"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A sociedade democrática


Vimos que uma ideologia não nasce do nada, nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira invertida, dissimulada e imaginária, a praxis social e histórica concretas. Isso se aplica à ideologia democrática. Em outras palavras, há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa perceber.
Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder. Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio, que os cidadãos, periodicamente, preenchem com um representante, podendo revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar.
As ideias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade.  

As ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia.
Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse.
Uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais.
Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes argentinos. Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos banqueiros. Os interesses dos índios, diferentes dos interesses dos garimpeiros.
Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que, por exemplo, numa região de uma grande cidade, as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que, na mesma região, um outro grupo social, favelado, tenha carência de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar a outra.
Interesses também podem ser conflitantes. Suponhamos, por exemplo, que interesse a grandes proprietários de terra deixá-las inativas esperando a valorização imobiliária, mas que interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência; temos aí um conflito de interesses. Suponhamos que interesse aos proprietários de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos comerciários um outro horário, no qual possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui um outro conflito de interesses.
Um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho. O dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho.
Dizemos que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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