A sociedade democrática
Vimos que uma ideologia não
nasce do nada, nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira invertida,
dissimulada e imaginária, a praxis
social e histórica concretas. Isso se aplica à ideologia democrática. Em outras
palavras, há, na prática democrática e nas ideias democráticas, uma
profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia
democrática percebe e deixa perceber.
Que significam as eleições?
Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder.
Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se identifica com os
ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio, que os
cidadãos, periodicamente, preenchem com um representante, podendo revogar seu
mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar.
As ideias de situação e
oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas
pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma
comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao
contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e
devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que
considera o conflito legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado
politicamente pela própria sociedade.
As ideias de igualdade e
liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação
jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que,
onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de
lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia.
Um direito difere de uma necessidade
ou carência e de um interesse.
Uma necessidade ou carência é
algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de
comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais.
Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos
sociais.
Um interesse também é algo
particular e específico. Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser
diferentes dos interesses dos estudantes argentinos. Os interesses dos
agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os
interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos banqueiros. Os
interesses dos índios, diferentes dos interesses dos garimpeiros.
Necessidades ou carências podem
ser conflitantes. Suponhamos que, por exemplo, numa região de uma grande
cidade, as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches
para seus filhos e que, na mesma região, um outro grupo social, favelado, tenha
carência de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma
das carências, mas não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar
a outra.
Interesses também podem ser
conflitantes. Suponhamos, por exemplo, que interesse a grandes proprietários de
terra deixá-las inativas esperando a valorização imobiliária, mas que interesse
a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência;
temos aí um conflito de interesses. Suponhamos que interesse aos proprietários
de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas,
mas que interesse aos comerciários um outro horário, no qual possam dispor de
horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui um outro conflito
de interesses.
Um direito, ao contrário de
necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral
e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim,
por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o
direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo
mais profundo: o direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes,
o direito à educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao
trabalho. O dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho.
Dizemos que uma sociedade – e
não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de eleições,
partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade
da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do
próprio regime político, ou seja, quando institui
direitos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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