"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A política contra a servidão voluntária


A tradição libertária

As teorias socialistas modernas são herdeiras da tradição libertária, isto é, das lutas sociais e políticas populares por liberdade e justiça contra a opressão dos poderosos.
Nessa tradição encontram-se as revoltas camponesas e dos artesãos do final da Idade Média, do início da Reforma Protestante e da Revolução Inglesa de 1644. Essas revoltas são conhecidas como milenaristas, pois, como vimos, as classes populares possuem como referencial para compreender e julgar a política as imagens bíblicas do Paraíso, da Nova Jerusalém e do tempo do fim, quando o Bem vencerá perpetuamente o Mal, instaurando o Reino dos Mil Anos de felicidade e justiça. Na Revolução Inglesa, os pobres tinham certeza de que chegara o tempo do fim e se aproximava o milênio. Viam os sinais do fim: fome, peste, guerras, eclipses, cometas, prodígios inexplicáveis, que anunciavam a vinda do Anti-Cristo e exigiam que fosse combatido pelos justos e bons.  

Em geral, o Anti-Cristo era identificado à pessoa de um governante tirânico: papas, reis, imperadores. Contra ele, os pobres se reuniam em comunidades igualitárias, armavam-se e partiam para a luta, pois deveriam preparar o mundo para a chegada triunfal de Cristo, que venceria definitivamente o Anti-Cristo. A esperança milenarista sempre viu a luta política como conflagração cósmica entre a luz e a treva, o justo e o injusto, o bem e o mal.
Também na tradição libertária encontra-se a obra de um jovem filósofo francês, La Boétie, escrita no século XVI, depois da derrota popular contra os exércitos e fiscais do rei, que vinham cobrar um novo imposto sobre o sal. La Boétie indaga como é possível que burgos inteiros, cidades inteiras, nações inteiras se submetam à vontade de um só, em geral o mais covarde e temeroso de todos. De onde um só tira o poder para esmagar todos os outros?
Duas são as respostas. Na primeira, La Boétie mostra que não é por medo que obedecemos à vontade de um só, mas porque desejamos a tirania. Como explicar que o tirano, cujo corpo é igual ao nosso, tenha crescido tanto, com mil olhos e mil ouvidos para nos espionar, mil bocas para nos enganar, mil mãos para nos esganar, mil pés para nos pisotear? Quem lhe deu os olhos e os ouvidos dos espiões, as bocas dos magistrados, as mãos e os pés dos soldados? O próprio povo.
A sociedade é como uma imensa pirâmide de tiranetes que se esmagam uns aos outros: o corpo do tirano é formado pelos seis que o aconselham, pelos sessenta que protegem os seis, pelos seiscentos que defendem os sessenta, pelos seis mil que servem aos seiscentos e pelos seis milhões que obedecem aos seis mil, na esperança de conseguir o poder para mandar em outros. A primeira resposta nos diz que o poder de um só sobre todos foi dado ao tirano por nosso desejo de sermos tiranos também.
A segunda resposta, porém, vai mais fundo. La Boétie indaga: De onde vem o próprio desejo de tirania? Do desejo de ter bens e riquezas, do desejo de ser proprietário. Mas de onde vem esse desejo de ter, de posse? Do desprezo pela liberdade. Se desejássemos verdadeiramente a liberdade, jamais a trocaríamos pela posse de bens, que nos escravizam aos outros e nos submetem à vontade dos mais fortes e tiranos.
Ao trocar o direito à liberdade pelo desejo de posses, aceitamos algo terrível: a servidão voluntária. Não somos obrigados a obedecer ao tirano e aos seus representantes, mas desejamos voluntariamente servi-los porque deles esperamos bens e a garantia de nossas posses. Usamos nossa liberdade para nos tornarmos servos.
Como derrubar um tirano e reconquistar a liberdade?
A resposta de La Boétie é espantosa: basta não dar ao tirano o que ele pede e exige. Não é preciso tomar das armas e fazer-lhe a guerra. Basta que não seja dado o que este deseja e será derrubado. Que quer ele? Nossa consciência e nossa liberdade, sob o desejo de posses e de mando. Se não trocarmos nossa consciência pela posse de bens e se não trocarmos nossa liberdade pelo desejo de mando, nada daremos ao tirano e, sem poder, ele cairá como um ídolo de barro.

Das lutas populares e das tradições libertárias nascem as teorias socialistas modernas.

Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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