A política contra a servidão voluntária
A tradição libertária
As teorias socialistas modernas
são herdeiras da tradição libertária, isto é, das lutas sociais e políticas
populares por liberdade e justiça contra a opressão dos poderosos.
Nessa tradição encontram-se as
revoltas camponesas e dos artesãos do final da Idade Média, do início da
Reforma Protestante e da Revolução Inglesa de 1644. Essas revoltas são
conhecidas como milenaristas, pois,
como vimos, as classes populares possuem como referencial para compreender e
julgar a política as imagens bíblicas do Paraíso, da Nova Jerusalém e do tempo
do fim, quando o Bem vencerá perpetuamente o Mal, instaurando o Reino dos Mil
Anos de felicidade e justiça. Na Revolução Inglesa, os pobres tinham certeza de
que chegara o tempo do fim e se aproximava o milênio. Viam os sinais do fim: fome,
peste, guerras, eclipses, cometas, prodígios inexplicáveis, que anunciavam a
vinda do Anti-Cristo e exigiam que fosse combatido pelos justos e bons.
Em geral, o Anti-Cristo era
identificado à pessoa de um governante tirânico: papas, reis, imperadores. Contra
ele, os pobres se reuniam em comunidades igualitárias, armavam-se e partiam
para a luta, pois deveriam preparar o mundo para a chegada triunfal de Cristo,
que venceria definitivamente o Anti-Cristo. A esperança milenarista sempre viu
a luta política como conflagração cósmica entre a luz e a treva, o justo e o
injusto, o bem e o mal.
Também na tradição libertária
encontra-se a obra de um jovem filósofo francês, La Boétie, escrita no século
XVI, depois da derrota popular contra os exércitos e fiscais do rei, que vinham
cobrar um novo imposto sobre o sal. La Boétie indaga como é possível que burgos
inteiros, cidades inteiras, nações inteiras se submetam à vontade de um só, em
geral o mais covarde e temeroso de todos. De onde um só tira o poder para esmagar todos os outros?
Duas são as respostas. Na
primeira, La Boétie mostra que não é por medo que obedecemos à vontade de um
só, mas porque desejamos a tirania. Como explicar que o tirano, cujo corpo é
igual ao nosso, tenha crescido tanto, com mil olhos e mil ouvidos para nos
espionar, mil bocas para nos enganar, mil mãos para nos esganar, mil pés para
nos pisotear? Quem lhe deu os olhos e os ouvidos dos espiões, as bocas dos
magistrados, as mãos e os pés dos soldados? O próprio povo.
A sociedade é como uma imensa
pirâmide de tiranetes que se esmagam uns aos outros: o corpo do tirano é
formado pelos seis que o aconselham, pelos sessenta que protegem os seis, pelos
seiscentos que defendem os sessenta, pelos seis mil que servem aos seiscentos e
pelos seis milhões que obedecem aos seis mil, na esperança de conseguir o poder
para mandar em outros. A primeira resposta nos diz que o poder de um só sobre
todos foi dado ao tirano por nosso desejo de sermos tiranos também.
A segunda resposta, porém, vai
mais fundo. La Boétie indaga: De onde vem o próprio desejo de tirania? Do
desejo de ter bens e riquezas, do desejo de ser proprietário. Mas de onde vem
esse desejo de ter, de posse? Do desprezo pela liberdade. Se
desejássemos verdadeiramente a liberdade, jamais a trocaríamos pela posse de
bens, que nos escravizam aos outros e nos submetem à vontade dos mais fortes e
tiranos.
Ao trocar o direito à liberdade
pelo desejo de posses, aceitamos algo terrível: a servidão voluntária. Não somos obrigados a obedecer ao tirano e aos
seus representantes, mas desejamos
voluntariamente servi-los porque deles esperamos bens e a garantia de
nossas posses. Usamos nossa liberdade para nos tornarmos servos.
Como derrubar um tirano e
reconquistar a liberdade?
A resposta de La Boétie é
espantosa: basta não dar ao tirano o que ele pede e exige. Não é preciso tomar
das armas e fazer-lhe a guerra. Basta que não seja dado o que este deseja e
será derrubado. Que quer ele? Nossa consciência e nossa liberdade, sob o desejo
de posses e de mando. Se não trocarmos nossa consciência pela posse de bens e
se não trocarmos nossa liberdade pelo desejo de mando, nada daremos ao tirano
e, sem poder, ele cairá como um ídolo de barro.
Das lutas populares e das
tradições libertárias nascem as teorias socialistas modernas.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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