"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Hume (Parte 01/09)


Alberto tinha os olhos fixos na mesinha que havia entre os dois. Em dado momento, virou-se e olhou para o céu emoldurado pela janela.
— O tempo está carregado — disse Sofia.
- Sim, está muito abafado.
— Vamos falar agora sobre Berkeley?
— Ele foi o segundo dos empíricos britânicos. Mas como Berkeley é um capítulo à parte, vamos nos concentrar primeiramente em David Hume, que viveu de 1711 a 1776. Sua filosofia é considerada ainda hoje a mais importante filosofia empírica. Além disso, Hume é de fundamental importância, pois inspirou o grande filósofo Immanuel Kant na execução de seu próprio projeto filosófico. 

— E o fato de eu estar muito mais interessada na filosofia de Berkeley não conta?
— Não, não conta. Hume cresceu nas proximidades de Edimburgo, na Escócia, e sua família queria muito que ele fosse um jurista. Ele próprio afirmava, porém, que sentia “uma insuperável aversão a tudo, menos à filosofia e à erudição”. Como os grandes pensadores franceses Voltaire e Rousseau, Hume viveu em pleno Iluminismo e viajou muito pela Europa, antes de voltar a se estabelecer em Edimburgo. Sua obra mais importante, Tratado sobre a natureza humana, foi publicada quando Hume tinha vinte e oito anos. Ele mesmo dizia, porém, que desde os quinze já tinhas as idéias para este livro.
— Estou vendo que preciso me apressar.
— Você já começou.
— Mas se um dia eu tiver minha própria filosofia, ela será completamente diferente de tudo o que tenho ouvido até agora.
— Você está sentindo falta de alguma coisa em especial?
— Em primeiro lugar, todos os filósofos de que ouvi falar até agora foram homens. E os homens parecem viver num mundo só deles. Eu estou mais interessada no mundo real: flores, animais e crianças, que nascem e crescem. Os seus filósofos falam sempre do homem enquanto ser humano e vira e mexe aparece um tratado sobre a natureza humana. Só que este homem, este ser humano, parece sempre ser um homem de meia-idade, e a vida começa com a gravidez e o nascimento. Acho que até agora vi poucas fraldas e ouvi muito pouco choro de nenê nesta história toda. Acho, também, que esta história tem muito pouco amor e amizade.
— Neste ponto você tem toda a razão. Mas talvez Hume seja exatamente um filósofo que pensa um pouco diferente. Mais do que qualquer outro, ele toma o mundo cotidiano como ponto de partida para a sua reflexão. Acredito até que Hume foi muito sensível ao modo como as crianças, esses novos cidadãos do mundo, experimentam a vida.
— Então vamos lá. Quero ouvir.
— Como empírico, Hume considerava sua tarefa eliminar todos os conceitos obscuros e os raciocínios intrincados criados até então por esses filósofos homens a que você se referiu. Naquela época, circulavam por escrito e oralmente toda a sorte de antigos resquícios de concepções medievais e conceitos das filosofias racionalistas do século XVII. Hume queria retornar à forma original pela qual o homem experimentava o mundo. Para ele, nenhuma filosofia que não aquela a que chegamos pela reflexão sobre o nosso cotidiano seria capaz de nos conduzir para além dessas mesmas experiências cotidianas.
— Até agora tudo isto soa muito promissor. Será que você poderia dar um exemplo?
— Na época de Hume, acreditava-se amplamente na existência dos anjos. Por anjo entendemos uma forma humana alada. Você já viu um anjo, Sofia?
— Não.
— Mas você já viu uma forma humana, não viu?
— Que pergunta boba…
— E você já viu asas?
— Claro, só que nunca numa pessoa.

Extratos da obra de GAARDER, Jostein.
O Mundo de Sofia. Romance da História da Filosofia.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.

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