Locke (Parte 03/03)
— Locke estabelece a diferença entre aquilo que chama de qualidades sensórias “primárias” e “secundárias”. E nesse ponto ele estende a mão aos filósofos que o precederam: por exemplo, a Descartes.
— Me explique isto!
— Por qualidades sensoriais primárias Locke entende a extensão, peso, forma, movimento e número das coisas. Com relação a essas propriedades, podemos estar certos de que nossos sentidos reproduzem as verdadeiras propriedades das coisas. Mas nós também percebemos outras características das coisas. Dizemos que uma coisa é doce ou azeda, verde ou vermelha, quente ou fria. Locke chama isto de qualidades sensoriais secundárias. Tais impressões sensoriais, como as cores, o cheiro, o gosto ou os sons, por exemplo, não reproduzem as características verdadeiras, presentes na coisa em si. Elas reproduzem apenas o efeito que essas características exteriores exercem sobre os nossos sentidos.
— Gosto não se discute.
— Exatamente. Podemos estar de acordo sobre as propriedades primárias, como tamanho e peso, por exemplo, pois elas são inerentes às coisas em si. Mas as propriedades secundárias, como cor e gosto, por exemplo, podem variar de animal para animal, de homem para homem, dependendo de como são constituídos os órgãos de sentidos de cada indivíduo.
— Quando Jorunn chupa uma laranja, ela faz a mesma cara que outras pessoas fazem quando chupam um limão. Geralmente, ela não consegue ir até o fim. “Está azeda”, costuma dizer. E na maioria das vezes eu acho a mesma laranja doce e gostosa.
— E nenhuma de vocês tem razão, porque também nenhuma de vocês está errada. Ao falar sobre suas impressões, vocês apenas estão descrevendo o efeito desta laranja sobre os seus sentidos. O mesmo ocorre com as cores. Pode ser que determinado tom de vermelho não agrade você. Se Jorunn compra um vestido exatamente desse tom, é melhor você guardar para si a sua opinião sobre ele. Não que o vestido seja feio ou bonito; é que vocês duas percebem de forma diferente este mesmo tom de vermelho.
— Mas todos concordam que uma laranja é redonda.
— Sim. Quando você segura uma laranja, não dá para dizer que ela tem a forma de um cubo, por exemplo. Você pode achá-la doce ou azeda, mas não pode “achar” que ela pesa oito quilos, se o peso dela não passa de duzentos gramas. Você pode talvez “acreditar” que ela pese muitos quilos, mas este é um caminho que não vai dar em nada. Se muitas pessoas tentam adivinhar quanto pesa um objeto, sempre haverá uma que estará mais certa que as outras. O mesmo vale para o número das coisas. Ou há 986 ervilhas numa tigela, ou não. E o mesmo vale também para o movimento: ou um carro está em movimento, ou então está parado.
— Entendo.
— No que se refere à “realidade estendida”, portanto, Locke compartilha da mesma opinião de Descartes, ou seja, que a realidade possui certas características que o homem pode captar com sua razão.
— Não é muito difícil concordar com isto.
— Também em outras áreas Locke admite o que chama de conhecimento “intuitivo” ou “demonstrativo”. Por exemplo, ele acha que certas diretrizes éticas valem para todos. Neste caso, podemos dizer que ele acredita no chamado pensamento do direito natural e que este é um traço racionalista que podemos identificar em seu pensamento. Outro traço claramente racionalista: Locke acredita que é inerente à razão humana saber que existe um Deus.
— Talvez ele tivesse razão.
— Razão em quê?
— Em que existe um Deus.
— É possível. Mas ele não deixa que esta problemática se reduza a uma questão de fé. Para ele, a idéia que o homem faz de Deus nasce da própria razão humana. E este é um traço racionalista do seu pensamento. Devo acrescentar que Locke defendia a liberdade de opinião e a tolerância. Além disso, defendia também a igualdade de direitos entre os sexos. Para ele, a posição de inferioridade das mulheres havia sido criada pelos homens. Assim sendo, ela podia ser corrigida.
— Concordo plenamente.
— Locke foi um dos primeiros filósofos dos tempos modernos a se ocupar com a questão dos papéis sexuais. Isto foi de grande importância mais tarde para John Stuart Mill, uma personalidade por sua vez muito importante para a luta pela igualdade de direitos entre os sexos. Locke expressou muito cedo pensamentos liberais que só floresceram em sua plenitude durante o Iluminismo francês do século XVIII. Por exemplo, ele foi o primeiro a propagar o princípio da divisão dos poderes…
— Isto significa que o poder do Estado é dividido em diferentes instituições.
— Você ainda se lembra que instituições são essas?
— O Legislativo, ou o Parlamento, o Judiciário, ou o Tribunal, e o Executivo, ou o próprio governo.
— Esta tripartição vem do filósofo iluminista francês Montesquieu. Locke chamou a atenção sobretudo para o fato de termos de separar o Poder Legislativo do Poder Executivo, se quisermos evitar a tirania. E ele foi contemporâneo de Luís XIV, que reunia em suas mãos todo o poder e costumava dizer “O Estado sou eu”. Dizemos que Luís XIV foi um governante “absoluto” e que “seu” Estado era mais arbitrário do que de direito. Contrariando esta idéia, Locke achava que para se assegurar um Estado de direito os representantes do povo tinham que promulgar leis que seriam depois executadas pelo rei e pelo governo.
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