Locke (Parte 01/03)
Alberto acomodou-se no sofá e disse:
— Da última vez em que estivemos sentados nesta sala, eu falei sobre Descartes e Spinoza. Chegamos a concordar que os dois têm um importante ponto em comum: ambos são racionalistas convictos.
— E um racionalista é alguém que acredita na importância da razão.
— Sim, o racionalista acredita na razão como fonte de conhecimento. E muitas vezes acredita também em certas idéias inatas ao homem, isto é, em idéias que já existem no homem independentemente de toda e qualquer experiência. E quanto mais clara for esta idéia, tanto mais certo é o fato de ela corresponder a um dado da realidade. Você ainda se lembra de que Descartes tinha uma clara e nítida noção do que fosse um “ser perfeito”. A partir dela ele chegou à conclusão de que Deus realmente existe.
— Não sou do tipo que se esquece facilmente das coisas.
— Este pensamento racionalista foi típico para a filosofia do século XVII. Na Idade Média ele também esteve bem representado e podemos encontrá-lo em Platão e Sócrates. No século XVIII, porém, ele passou a ser exposto a uma crítica cada vez mais severa e mais profunda. Muitos filósofos passaram a defender, então, a opinião de que nossa mente é totalmente vazia de conteúdo, enquanto não vivemos uma experiência sensorial. Esta visão é chamada de empirismo.
— E é desses empíricos que você vai falar hoje?
— Vou tentar. Os empíricos, ou filósofos da experiência, mais importantes foram Locke, Berkeley e Hume, todos ingleses. Os líderes entre os racionalistas do século XVII foram o francês Descartes, o holandês Spinoza e o alemão Leibniz. Por isso é que freqüentemente fazemos uma distinção entre o empirismo inglês e o racionalismo continental.
— Por mim, tudo bem. Só que este monte de nomes me confundiu um pouco. Será que dava para você repetir o que se entende por “empirismo”?
— Um empírico deriva todo o seu conhecimento do mundo daquilo que lhe dizem os seus sentidos. A formulação clássica de uma postura empírica vem de Aristóteles, para quem nada há na mente que já não tenha passado pelos sentidos. Esta idéia contém uma severa crítica a Platão, para quem o homem, ao vir ao mundo, trazia consigo idéias inatas do mundo das idéias. Locke repetiu as palavras de Aristóteles, mas o destinatário de sua crítica era Descartes.
— Não há nada na mente que já não tenha passado pelos sentidos?
— Nós não nascemos com idéias inatas, ou com uma visão de mundo já formada. E nada sabemos sobre o mundo em que somos colocados antes de o percebermos com nossos sentidos. Quando pensamos alguma coisa, portanto, que não somos capazes de relacionar com fatos vivenciados, este pensamento ou noção é falso. Por exemplo, quando empregamos palavras como “Deus”, “eternidade” ou “substância”, nossa razão está funcionando em ponto morto. Isto porque ninguém nunca vivenciou Deus, a eternidade ou aquilo que os filósofos chamam de “substância”. Por conseguinte, muitos estudiosos podem escrever tratados que, na verdade, não acrescentam nada de novo ao conhecimento. Uma filosofia baseada em tal reflexão, por mais refinada que seja, pode impressionar, mas no fundo não passa de mera fantasia. Os filósofos dos séculos XVII e XVIII tinham herdado muitos desses tratados. Era chegada a hora de examiná-los sob uma lupa, a fim de eliminar deles toda e qualquer noção ou idéia vazia. Talvez possamos comparar isto ao processo de lavagem do ouro. A maior parte dos resíduos não passa de areia e barro, mas de vez em quando há também uma pedrinha de ouro brilhando no meio de tudo.
— E essas pedrinhas de ouro seriam as verdadeiras experiências?
— Ou pelo menos os pensamentos que podem ser relacionados às experiências humanas. Para os empíricos britânicos, era importante examinar todas as noções humanas, a fim de verificar se elas podiam ser comprovadas com experiências reais. Mas vamos examinar um filósofo de cada vez.
— Sim, vamos lá.
Extratos da obra de GAARDER, Jostein.
O Mundo de Sofia. Romance da História da Filosofia.
São Paulo: Cia das Letras, 1996.
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