Hume (Parte 02/09)
— Pois bem, para Hume, o “anjo” é uma noção complexa. Ela se constitui de duas experiências diferentes, que ocorrem simultaneamente na imaginação humana, já que na realidade estão dissociadas. Em outras palavras, esta noção é falsa e como tal deve ser rejeitada. Do mesmo modo, temos de proceder a uma verdadeira limpeza em nossos pensamentos e idéias, pois, como Hume afirmou, “se tomamos um livro sobre a doutrina divina, ou sobre metafísica, devemos perguntar o seguinte: ele contém algum raciocínio abstrato sobre tamanho ou números? Não. Contém algum raciocínio sobre fatos e sobre a vida que seja baseado em experiências? Não. Atira-o, então, ao fogo, pois tudo o que ele contém não passa de fantasmagoria e ilusão”.
— Muito drástico.
— Sim, mas depois dessa limpeza toda sobra o mundo, Sofia, e muito mais vivo e de contornos mais nítidos do que antes. Hume queria retornar ao modo como a criança experimenta o mundo, antes de o espaço de sua mente ser tomado por pensamentos e reflexões. Você não disse que muitos dos filósofos sobre os quais falamos vivem num mundo só deles e que você se interessa mais pelo mundo real?
— Sim, foi mais ou menos isso.
— Pois bem, estas palavras poderiam ter sido de Hume. Mas vamos acompanhar mais de perto o seu raciocínio.
— Estou ouvindo.
— A primeira coisa que Hume constata é que o homem possui impressões, de um lado, e idéias, de outro. Por impressão ele entende a percepção imediata da realidade exterior. Por idéia ele entende a lembrança de tal impressão.
— Você pode me dar um exemplo?
— Se você queima a mão no fogão, o que você experimenta é uma impressão imediata. Mais tarde pode ser que você se lembre de que se queimou, e esta lembrança Hume a chama de idéia, noção. A diferença entre elas é que a impressão é mais forte e mais viva do que a lembrança que se tem dela mais tarde. Podemos chamar a impressão sensorial de original, e a idéia, ou a lembrança que se tem dela, de uma cópia pálida do original. Afinal, a impressão é a causa direta da idéia guardada na mente.
— Até aqui deu para acompanhar.
— Mas Hume também chama a atenção para o fato de tanto a impressão quanto a idéia poderem ser ou simples ou complexas. Você ainda se lembra do exemplo da maçã quando conversamos sobre Locke? Como tal, a experiência direta de uma maçã é uma impressão complexa. Da mesma forma, a idéia que a mente faz de uma maçã também é uma idéia complexa.
— Desculpe-me interrompê-lo, mas isto é mesmo importante?
— Se é importante? E como! Embora os filósofos tenham se ocupado de uma série de problemas aparentemente banais, você não pode recuar diante da oportunidade de participar da construção de um raciocínio. Na certa Hume teria concordado com Descartes quanto ao fato de um raciocínio ter de ser construído a começar pela sua base.
— Eu me rendo…
— Hume está preocupado com o fato de que às vezes formamos idéias e noções complexas, para as quais não há correspondentes complexos na realidade material. É dessa forma que surgem noções falsas sobre coisas que não existem na natureza. Já citamos o exemplo do anjo. E anteriormente falamos também do crocofante. Outro exemplo pode ser Pégaso, o cavalo alado. Em todos esses exemplos, temos de admitir que foi nossa mente, sozinha, que construiu essas coisas, juntando a impressão de um par de asas com a impressão de um cavalo, por exemplo. Esses dois componentes foram experimentados por nós um dia e entraram para o teatro da mente como impressões “verdadeiras”. No fundo, a mente não inventou nada. Ela só teve o trabalho de pegar tesoura e cola para construir essas noções falsas.
— Entendo. E entendo também que isto pode ser muito importante.
0 Response to "Hume (Parte 02/09)"
Postar um comentário