"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Hume (Parte 03/09)


— Ótimo. Hume quer estudar cada noção, cada idéia, a fim de verificar se sua composição encontra um correlato na realidade. Nesse sentido, ele pergunta: de que impressões surgiu esta idéia? Em primeiríssimo lugar, ele precisa decompor uma noção complexa em suas noções simples constituintes. É assim que ele pretende chegar a um método crítico de análise das idéias do homem. E também é assim que ele pretende “fazer uma faxina” nos nossos pensamentos e idéias. 

— Você teria um ou dois exemplos?
— Na época de Hume, as pessoas tinham uma noção muito clara do céu. Talvez você ainda se lembre das palavras de Descartes, segundo as quais as noções claras e distintas seriam, em si, garantia para a existência do correspondente desta idéia na realidade.
— Já disse que não sou do tipo que se esquece facilmente das coisas.
— Não é difícil ver que a noção de “céu” é uma noção extremamente complexa. Vamos citar apenas alguns elementos: no “céu” existem um “portão de pérolas”, “ruas de ouro”, “exércitos de anjos” etc. etc. E podemos ir mais além em nosso trabalho de decomposição dos elementos em seus fatores constituintes, pois também o “portão de pérolas”, as “ruas de ouro” e os “exércitos de anjos” são noções complexas. Somente quando nos damos conta de que nossa noção complexa de “céu” se compõe de noções simples tais como “portão”, “pérola”, “rua”, “ouro”, “figuras humanas vestidas de branco” e “asas” é que podemos nos perguntar se algum dia já experimentamos na realidade essas “impressões simples”.
— E na verdade já as experimentamos. Só que depois nós as combinamos para formar uma imagem onírica.
— Exatamente. Pois quando sonhamos, usamos tesoura e cola, por assim dizer. Para Hume, porém, todo o material que usamos para compor nossas imagens oníricas chegou um dia à nossa consciência por meio de impressões simples. Uma pessoa que nunca viu ouro não consegue imaginar o que seja uma rua de ouro.
— Muito inteligente da parte dele. E quanto à “noção clara de Deus”, de Descartes?
— Também para isto Hume tem uma resposta. Digamos que, para nós, Deus é uma criatura infinitamente inteligente, sábia e boa. Temos aí, portanto, uma noção complexa formada por algo infinitamente inteligente, infinitamente sábio e infinitamente bom. Se nunca tivéssemos experimentado a inteligência, a sabedoria e a bondade, não poderíamos ter tal conceito de Deus. E pode ser também que nossa imagem de Deus nos fale de um pai severo, mas justo. Quer dizer, outra noção complexa composta por “pai”, “severo” e “justo”. E assim por diante. Depois de Hume, muitos críticos da religião chamaram a atenção para o fato de tal noção de Deus ser atribuída ao modo como nós, quando crianças, “experimentamos” nosso próprio pai. Para esses críticos, a noção de um pai levou à noção de um Pai do Céu.
— Talvez isto seja verdade. Mas eu nunca aceitei que Deus fosse necessariamente um homem. E para compensar isto, minha mãe às vezes diz “pelo amor da Deusa”, ou coisa parecida.
— Portanto, Hume quer atacar todo e qualquer pensamento ou idéia que não possa ser atribuído a uma impressão sensorial correspondente. Ele costumava dizer que queria banir para bem longe esse absurdo que durante tanto tempo dominara o pensamento metafísico, acabando por condená-lo ao descrédito. Mas também na vida cotidiana empregamos conceitos complexos, sem nos perguntarmos se eles têm alguma validade. É o caso, por exemplo, da noção de um Eu, ou de um núcleo da personalidade. Foi esta a noção que serviu de base para a filosofia de Descartes. Ela foi a noção clara e nítida sobre a qual ele construiu toda a sua filosofia.
— Espero que Hume não tenha tentado negar que eu sou eu, pois nesse caso ele não passaria de um cabeça-oca.

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