"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Hume (Parte 09/09)


— Segundo Hume, todos nós temos um sentimento acerca do bem-estar e do mal-estar dos outros. Temos, portanto, a capacidade de sentir compaixão pelos outros. Mas nada disso tem a ver com a razão.
— Não sei se estou bem certa sobre isto.
— Nem sempre é um ato de irracionalidade tirar alguém de nosso caminho, Sofia. Quando se quer conseguir alguma coisa, esta pode ser uma boa forma de se atingir este objetivo.
— Francamente! Protesto!
— Então me explique por que não podemos eliminar alguém que nos estorva.
— O outro também ama a vida. Por isso não podemos eliminá-lo.
— Isto é uma explicação lógica? 

— Não faço a menor idéia.
— O que você fez foi derivar de uma oração descritiva, como “O outro também ama a vida”, uma oração normativa: “Por isso não podemos eliminá-lo.” Do ponto de vista estritamente racional, isto é um absurdo. Do mesmo modo, do fato de que muitas pessoas sonegam impostos você poderia concluir que também pode e deve sonegar. Hume deixou claro que as conclusões não devem ser tiradas saltando-se de sentenças do ser para sentenças do dever ser. Não obstante, isto acontece com muita freqüência, inclusive em artigos de jornal, programas de partidos e discursos de parlamentares. Você gostaria de ouvir alguns exemplos?
— Sim.
— “Cada vez mais pessoas viajam de avião. Por esta razão, é preciso construir mais aeroportos.” Você acha a conclusão convincente?
— Não. É uma conclusão idiota, pois temos de pensar também no meio ambiente. Pessoalmente, acho que seria preferível ampliar a rede de trilhos das ferroviárias.
— Veja outro exemplo: “A ampliação dos poços de petróleo vai aumentar em 10% o padrão de vida da população. Por esta razão, é preciso abrir o quanto antes novos poços de petróleo”.
— Absurdo. Também neste caso é preciso pensar no meio ambiente. Além disso, nosso padrão de vida já é elevado o suficiente.
— Outro exemplo muito comum: “Esta lei foi promulgada pelo Parlamento e por isso todos os cidadãos têm de respeitá-la”. Acontece que não são raros os casos em que a observância de leis que são “baixadas” contraria as convicções mais profundas das pessoas.
— Entendo.
— Vimos, portanto, que não podemos demonstrar por meio da razão como devemos nos comportar. Quando agimos cientes de nossa responsabilidade, isto não significa que estamos aguçando nossa razão, mas que estamos aguçando nossos sentimentos pelo bem-estar dos outros. Hume costumava dizer que, do ponto de vista da razão, preferir a destruição do mundo a um arranhão no dedo era algo que se justificava.
— Que afirmação mais terrível!
— E pode ser mais terrível ainda. Você sabe que os nazistas eliminaram milhões de judeus. O que você diria que não estava certo com os nazistas: sua razão ou o seu sentimento?
— Acho que não havia alguma coisa certa era com o sentimento deles.
— Pois é. Em muitos casos, tratava-se de pessoas mentalmente sãs. Aliás, não são raras as vezes em que encontramos um frio calculismo por trás de decisões as mais insensíveis. Depois da guerra, muitos nazistas foram condenados, mas não por terem sido irracionais. Foram condenados por sua crueldade. E o oposto também é possível: acontece de pessoas mentalmente perturbadas serem absolvidas por seus crimes. Chamamos isto de “inimputabilidade no momento da ação”. Por outro lado, nunca ninguém foi absolvido por “falta de sentimento” no momento do crime.
— Só faltava essa!
— Mas não precisamos recorrer aos exemplos mais grotescos. Depois de uma grande enchente, por exemplo, quando há milhares de desabrigados precisando de ajuda, são os nossos sentimentos que decidem se vamos ajudar ou não. Se fôssemos pessoas insensíveis e deixássemos esta decisão à “frieza da razão”, poderíamos pensar que num mundo que sofre com a superpopulação até que seria bom se alguns milhares de pessoas morressem.
— Fico furiosa quando me passa pela cabeça que alguém possa pensar assim.
— E neste caso não é a sua razão que fica furiosa.
— Acho que podemos parar por aqui.

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