"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Hume (Parte 04/09)


— Sofia, se eu pudesse escolher uma única coisa para você aprender de todo este curso de filosofia, eu diria para você aprender a não tirar conclusões precipitadas.
— Continue.
— Não… você mesma pode aplicar o método de Hume para analisar o que entende por seu “eu”.
— Nesse caso preciso começar perguntando se a noção de “eu” é simples ou complexa.
— E você tem uma resposta para esta pergunta?
— Bem, tenho de admitir que me sinto extremamente complexa. Por exemplo, no que se refere ao humor, sou muito inconsistente. E também acho difícil decidir por alguma coisa. Além disso, posso gostar de uma pessoa hoje e detestá-la amanhã. 

— Sua noção de “eu” é complexa, portanto.
— Certo. Em seguida tenho de perguntar se tenho uma impressão complexa correspondente a esta noção complexa de “eu”. E acho que tenho. Acho que sempre tive.
— Isso faz de você uma pessoa insegura?
— Não sei. É que estou mudando o tempo todo. Por exemplo, não sou hoje a mesma Sofia de quatro anos atrás. Meu humor e a forma como eu mesma me vejo modificam-se de um minuto para outro. É como se de repente eu passasse a ser outra pessoa, completamente diferente.
— Quer dizer que é falsa a sensação de que nossa personalidade possui um núcleo constante. Nossa noção de eu compõe-se, na verdade, de uma longa cadeia de impressões isoladas, que nunca conseguimos vivenciar simultaneamente. Hume fala de um “feixe de diferentes conteúdos de consciência, que se sucedem numa rapidez inimaginável e que estão em constante fluxo e movimento”. Nossa mente seria, então, “uma espécie de teatro”, no qual estes diferentes conteúdos “se sucedem em suas entradas e saídas de cena, e se misturam numa infinidade desordenada de posições e de tipos”. Para Hume, portanto, o homem não possui uma “base” de personalidade, atrás ou abaixo da qual se desenrola a cena de que são atores as percepções e as sensações. É como as imagens numa tela de cinema: elas se alternam tão rapidamente que não vemos que o filme de compõe de imagens isoladas. Na verdade, essas imagens não estão conectadas. O filme é uma soma de instantes.
— Acho que desisto.
— Isto significa que você desiste da idéia de que sua personalidade tem um núcleo constante, imutável?
— Acho que sim.
— E um minuto atrás você tinha uma opinião completamente diferente! Bem, resta acrescentar que a análise de Hume da consciência humana e a sua recusa em aceitar um núcleo constante e imutável para a personalidade já tinham sido defendidas dois mil e quinhentos anos antes, do outro lado do mundo.
— Por quem?
— Por Buda. É muito intrigante como os dois se expressam de forma parecida. Buda considerava a vida humana uma sucessão ininterrupta de processos físicos e mentais, que modificavam as pessoas a cada momento. O bebê de colo não é a mesma pessoa em idade adulta; hoje não sou o mesmo de ontem. Buda pregava que não posso dizer que alguma coisa me pertença, assim como não posso dizer que este sou eu. Não há, portanto, um eu, e a personalidade não possui um núcleo rígido, imutável.
— Sim, a semelhança com Hume é surpreendente.
— Como conseqüência direta da noção de um eu imutável, muitos racionalistas consideravam evidente o fato de o homem possuir uma alma imortal.
— Mas isto também é uma noção falsa?
— Pelo menos é o que dizem Hume e Buda. Você sabe o que dizem que Buda teria dito a seus seguidores pouco antes de morrer?
— Não. Como posso saber?

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