Kierkegaard (Parte 02/07)
Sofia tirou a rolha do vidro vermelho e encostou-o
cautelosamente nos lábios. O suco tinha um gosto adocicado e estranho. Mas isto
não era tudo. Imediatamente aconteceu algo à sua volta: primeiro, foi como se a
imagem do lago, da floresta e da cabana se fundissem numa coisa só. Depois lhe
pareceu que tudo o que ela via era apenas uma pessoa e que esta pessoa era ela
mesma. Quando finalmente olhou para Alberto, ele também parecia ter se
transformado numa parte dela mesma.
— Que coisa estranha — disse ela. — De repente, tudo o
que vejo parece estar relacionado. Tenho a sensação de que tudo é apenas uma única consciência.
Alberto concordou com a cabeça, mas Sofia teve a sensação
de que era ela mesma quem concordava.
— Isto é o panteísmo, ou a filosofia da unidade — disse
Alberto. — É o espírito do mundo dos românticos, que experimentavam tudo como
um único e grande “eu”. Mas é também Hegel, que, sem perder o indivíduo
totalmente de vista, considerava tudo expressão de uma razão universal.
— Você acha que eu devo beber o líquido do outro vidro?
— É o que está escrito aí.
Sofia tirou a rolha do outro vidro e deu uma boa golada.
O líquido azul tinha um gosto mais fresco e mais azedo do que o vermelho. Mas
também desta vez tudo à sua volta se transformou de imediato: no mesmo instante
passou o efeito do líquido vermelho e tudo voltou ao seu lugar. Alberto voltou
a ser Alberto, as árvores da floresta voltaram a ser árvores da floresta e o
lago voltou a ser lago. Mas isto também durou apenas um segundo, e então tudo o
que Sofia via começou a se desmanchar. Para começar, a floresta deixou de ser
floresta; era como se, de repente, a menor das árvores fosse um mundo em si,
cada galho uma aventura sobre a qual podiam ser contados milhares de contos de
fadas. O pequeno lago transformou-se para ela num oceano infinito, não porque
fosse grande e profundo, mas por causa de seus milhares de detalhes cintilantes
e por suas ondas de formas e tamanhos fascinantes. Sofia entendeu que poderia
ficar observando este pequeno lago pelo resto de sua vida e ainda assim ele
continuaria sendo um mistério indecifrável para ela.
Sofia olhou, então, para a copa de uma árvore. Ali, três
pardais estavam entretidos numa brincadeira divertida. Eles já tinham pousado
na árvore antes de Sofia beber o líquido vermelho, mas só agora é que ela
realmente os tinha percebido. O líquido vermelho, que ela bebera da primeira
vez, apagara todos os contrastes e todas as diferenças individuais.
Sofia levantou-se do degrau de pedra em que estava
sentada, ajoelhou-se e observou a grama. E ali também encontrou um mundo à
parte, mais ou menos como se tivesse dado um mergulho e abrisse os olhos pela
primeira vez no fundo do mar. Entre os ramos e as folhinhas da grama, milhares
de formas de vida movimentavam-se febrilmente. Sofia viu uma aranha que se
movia segura e energicamente sobre o musgo, um pulgão subindo e descendo por um
raminho de grama e um pequeno exército de formigas trabalhando em conjunto. E
mesmo entre as formigas, cada uma tinha o seu jeito particular de levantar as
pernas.
O mais curioso de tudo, porém, foi quando Sofia se
levantou novamente e olhou para Alberto, que continuava de pé à soleira da
porta. De repente ela viu nele um ser completamente fora do comum, uma espécie
de homem de outro planeta, ou uma personagem saída de um conto de fadas
diferente daquele que ela vivia no momento. Ao mesmo tempo, ela também se
percebeu a si mesma de uma maneira completamente diferente; ela era uma pessoa
especial, extraordinária, não apenas uma pessoa comum, não apenas uma jovem de
quinze anos: ela era Sofia Amundsen e só ela era assim!
— O que você está vendo? — perguntou Alberto.
— Vejo que você é um pássaro muito esquisito.
— É mesmo?
— Acho que nunca vou entender como é ser outra pessoa.
Não há duas pessoas iguais em todo o mundo.
— E a floresta?
— Ela não parece mais ser a mesma. Ela é como um universo
de muitos contos fantásticos.
— Foi o que pensei. O vidro azul é o individualismo. Ele
foi a reação de Søren Kierkegaard à filosofia da unidade do Romantismo. E não
foi por acaso que o escritor de contos fantásticos Hans Christian Andersen foi
contemporâneo de Kierkegaard. Ele tinha o mesmo olhar aguçado para a infinita
riqueza de detalhes da natureza. Cem anos antes, este mesmo olhar já havia
estado presente em Leibniz, que reagiu à filosofia da unidade de Spinoza do
mesmo modo como Kierkegaard reagiu à de Hegel.
— Estou ouvindo o que você diz, mas você me parece tão
estranho que tenho de me esforçar para não rir.
— Entendo. Então beba mais um golinho do vidro vermelho.
Vamos nos sentar aqui na escada da entrada. Ainda temos de falar alguma coisa
sobre Kierkegaard antes de terminarmos nosso encontro de hoje.
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