"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Religião



Se tentarmos lembrar o que vimos à respeito das primeiras explicações propostas pelas sociedades antigas sobre os eventos físicos do mundo, assim como sobre o próprio fenômeno da vida, que também não deixa de ser um evento físico no mundo, veremos que estas explicações se baseavam em histórias acerca de seres fantásticos como deuses, ninfas, titãs, sátiros e outras entidades com poderes maiores ou menores sobre o destino dos seres mortais. Estas histórias foram reunidas sob o nome de Mitologia, sendo que cada povo, cada cultura, podia possuir a sua mitologia particular.  

Esses poderes sobre os seres humanos colocavam as entidades mitológicas em um nível de existência não humano, em geral eram consideradas imortais. Isto acabou criando uma ruptura, uma distinção entre dois níveis de existência: a mortal e a imortal, a humana e a divina, a do profano e a do sagrado. Na existência humana, mortal e profana, tudo é limitado, tudo é visível e material, por este mesmo motivo tudo é corruptível e imperfeito em essência. Já no plano do divino, do imortal, do sagrado, todas as causas são consideradas invisíveis. Neste plano divino não pode haver limites, nem temporais nem espaciais, para as deidades. Assim, os deuses devem possuir um poder ilimitado sobre tudo o que os cerca e, em geral, as suas razões e ações devem estar para além de nossa compreensão mortal, limitada e imperfeita. Estes fatores lhes conferem um ar mágico, misterioso, sublime e, às vezes, assombroso e assustador.
Para os povos mais antigos, tudo no mundo que parecia não possuir uma causa natural (em outras palavras, que parecia possuir uma causa não física), automaticamente passava a ter uma origem mágica ou misteriosa por função da ação de algum ser divino e poderoso cujas razões eram um total mistério. Se, por exemplo, retomarmos a mitologia grega, perceberemos que os deuses daquelas histórias possuíam humores muito diversos como raiva, inveja, ciúme, paixão, desejo, além de outras. Na medida em que lhes eram atribuídas certas responsabilidades, como sobre as boas ou as más colheitas, sobre as tempestades ou as calmarias no mar, ou mesmo sobre as vitórias ou as derrotas nas guerras, os gregos passaram a querer seduzir a vontade divina tentando conduzi-la de acordo com os seus interesses mortais particulares.
Deste modo, o ser humano passou a tentar reconquistar um paraíso perdido, vendo-se na necessidade de uma re-união com a divindade que lhe retirou este paraíso. O termo Religião vem de uma contração latina que significa religar; ligar ou unir novamente, no caso o Homem com sua origem divina perdida. Este desejo de uma re-ligação do homem com sua origem divina perdida, assim como foi contada em muitas histórias mitológicas (como por exemplo a de Adão e Eva, na mitologia judaica), pode, hipoteticamente, advir de duas causas principais: a primeira, de uma ânsia inata de tornar ilimitado tudo que é limitado, de conhecer o incompreensível, em participar do sublime ou de algo que só podemos imaginar como um Paraíso ou como um estado de Super-Existência; a segunda, de um medo irracional, instintivo, de algo que está para além dos umbrais da vida, um medo que pode ser atribuído à dor do desaparecimento, ou do simples impulso de conservação ou de proteção da vida biológica.
Seja pelo motivo da atração (pelo desejo de conseguir um bom lugar no céu) ou pelo motivo da repulsão (pelo medo de sermos castigados por erros que cometemos durante a vida) nos vemos impelidos a tentar esta re-ligação com o deus ou com os deuses que acreditamos existir no plano do sobrenatural. O exercício da religião se dá por meio de cultos nos quais representamos, em um ritual, um comprometimento em restabelecer nosso vínculo com o divino. Porém, como o profano não pode se unir ao sagrado por seus próprios meios, entra em ação a figura de um sacerdote, um homem santo que já se re-ligou com a divindade por meio de muitos sacrifícios, ou simplesmente porque assim foi o desejo da divindade. Este sacerdote serve de intermediário entre o profano e o sagrado, entre o pecado e a redenção, entre o finito e o infinito, entre o erro e a perfeição. Desta maneira, será ele o responsável por levar, por meio de um ritual planejado previamente, a oferenda daquele que quer se re-ligar com sua origem mítica ou até com o próprio Mítico.
Podemos ver isto acontecendo, por exemplo, numa missa católica, em que o padre (o sacerdote) conduz os fiéis (o profano) ante o altar (símbolo do divino na Terra). O padre se põe exatamente entre o sagrado e o profano e repete precisamente os gestos e as palavras ensinados por um enviado da divindade.
Assim se simboliza o comprometimento entre as duas partes, seja por meio da penitência, que é um tipo de pagamento pela culpa do ato que o afastou do divino em primeiro lugar, seja por meio do sacrifício de sangue como quando, metaforicamente, o padre e os fiéis bebem o vinho e comem a hóstia representando, respectivamente, o sangue e a carne de Deus na Terra (do cordeiro de Deus).
Todos os rituais religiosos têm este fim: o de, por meio de sacrifícios de diversos tipos, promover a re-ligação do homem com o sobrenatural. Mas é necessário que o homem possua a crença num plano imaterial, num plano que vai além da carne, que vai além do físico, que vai além da vida mundana. Desta forma, a religião também possui um papel de doutrinação; isto é, o de ensinar e cativar, o de convencer aqueles que não acreditam numa re-ligação com o plano divino de que é preciso acreditar, muitas vezes sob pena de um risco alto para a parte de nós que não é física, ou seja, sob a ameaça de um risco para a nossa alma, ou para o nosso espírito ou mesmo para a nossa mente.

Fonte: Palavra em Ação.
CD-ROM, Claranto Editora.

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