Kierkegaard (Parte 03/07)
Sentaram-se e Sofia bebeu um golinho do vidro vermelho.
No mesmo instante as coisas dispersas voltaram a se concentrar, só que um pouco
demais, pois Sofia sentiu novamente que as diferenças haviam deixado de ser
importantes. Tocou os lábios rapidamente no gargalo do frasco azul e o mundo
ficou mais ou menos como era antes de Alice chegar trazendo aqueles frascos com
líquidos estranhos.
— Mas qual é verdadeiro?
— perguntou Sofia. — É o líquido vermelho ou o azul que nos permite
experimentar o mundo como realmente ele é?
— Ambos, Sofia. Não podemos dizer que os românticos
estavam enganados. Mas talvez eles tenham sido parciais demais.
— E o líquido azul?
— Acho que Kierkegaard deve ter tomado uns bons goles
dele. De qualquer forma, ele tinha o olhar muito aguçado para a importância do
indivíduo. Somos mais do que “filhos de nosso tempo”, dizia ele. Cada um de nós
também é um indivíduo único, que só vive esta única vez.
— E parece que Hegel não se interessou muito por isto,
não é?
— Exato. Hegel estava mais preocupado com as grandes
linhas da história. E foi exatamente isto que deixou Kierkegaard irritado. Ele
disse que a filosofia da unidade dos românticos e que o historicismo de Hegel tinham tirado do indivíduo a responsabilidade
pela sua própria vida. Para Kierkegaard, Hegel e os românticos eram farinha do
mesmo saco.
— É compreensível que ele tenha ficado furioso.
— Søren Kierkegaard nasceu em Copenhague em 1813 e foi
criado por um pai muito severo, de quem herdou também certa melancolia
religiosa.
— Isto não me parece nada bom.
— Não mesmo. Esta melancolia chegou mesmo a levar o jovem
Kierkegaard a romper um noivado, fato que não foi bem recebido pela burguesia
de Copenhague. Assim, desde muito cedo ele foi uma pessoa marginalizada e alvo
de chacotas. Bem, a verdade é que logo ele passaria a dar o troco aos outros à
sua volta e se tornaria paulatinamente aquilo que Ibsen chamou de “um inimigo
do povo”.
— Tudo por causa do rompimento de um noivado?
— Não, não só por causa disso. No fim de sua vida,
sobretudo, Kierkegaard se tornou um crítico severo de toda a cultura européia.
Ele dizia que toda a Europa estava a caminho da bancarrota. Kierkegaard achava
que os tempos em que vivia eram totalmente destituídos de paixão e engajamento,
e criticava duramente a atitude tépida e frouxa da Igreja. Sua crítica à
chamada “igreja de domingo” podia ser qualquer coisa menos sutil.
— Hoje em dia fala-se do “cristianismo da confirmação”.
Isto porque muitas pessoas só passam pela confirmação para ganhar presentes.
— Sim, você tem razão. Para Kierkegaard, o cristianismo
era ao mesmo tempo tão avassalador e tão adverso à razão que só podia ser “ou
isto, ou aquilo”. Quer dizer, ele achava que não era possível ser “um pouco
cristão”, ou então “cristão até certo ponto”. Pois ou Jesus Cristo tinha
ressuscitado no domingo de Páscoa, ou não. E se ele realmente tivesse se
levantado dos mortos, isto seria algo tão avassalador que teria necessariamente de marcar toda a nossa vida.
— Entendo.
— Mas Kierkegaard observava que a Igreja e a maioria dos
cristãos de seu tempo tinham uma posição extremamente evasiva em relação às
questões religiosas. E ele não aceitava isto de jeito nenhum. Religião e razão
eram, para ele, como fogo e água. Kierkegaard achava que não bastava achar
“verdadeiro” o cristianismo. Ter uma fé cristã significava seguir os passos de
Jesus.
— E o que isto tinha a ver com Hegel?
— Opa! Talvez tenhamos começado pela ponta errada.
— Então sugiro que você engate marcha à ré e comece do
começo.
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