"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A falta


Há religiões da exterioridade e da interioridade. Nas primeiras, a falta ou pecado é uma ação externa visível, cometida voluntária ou involuntariamente contra a divindade. A falta é irreverência, sentida sob a forma de vergonha, trazendo como conseqüência uma impureza que contamina o faltoso e o grupo, exigindo rituais de purificação.
Nas religiões da interioridade, como é o caso do cristianismo, a falta ou pecado é uma ação interna invisível (mesmo que resulte num ato externo visível), causada por uma vontade má – nesse caso, a falta é um crime – ou por um entendimento equivocado – nesse caso, a falta é um erro. É uma transgressão experimentada na forma de culpa, exigindo expiação.
Nas religiões da exterioridade, o perdão depende exclusivamente de uma graça, isto é, a divindade pode ou não perdoar, independentemente dos rituais de purificação realizados pelo indivíduo ou pelo grupo. Nas religiões da interioridade, o perdão – que virá na forma de graça – exige uma experiência interior precisa, o arrependimento.  

Nas religiões da exterioridade – como a grega, a romana, as africanas e indígenas -, a falta é causada por uma fatalidade. O fatum (destino, em latim; fado, em português) ou a moira (destino fatal, em grego) determinou desde sempre que ela seria cometida por alguém, para desgraça sua e de seu grupo. A falta não depende da vontade do agente, mas de uma decisão divina. É assim, por exemplo, que Édipo cumprirá seu destino.
Nas religiões da interioridade – como é o caso do judaísmo e do cristianismo -, a falta nasce da liberdade do agente, que, conhecendo o bem e o mal (a lei divina), transgride consciente e voluntariamente o decreto de Deus. Sem dúvida, para o cristianismo, a falta é um problema teológico insolúvel, pois o Deus cristão é onipotente e onisciente, sabendo tudo desde a eternidade e, portanto, conhecendo previamente o pecador. Se pune o pecado, mas sabia que seria cometido, não seria injusto por não impedir que seja cometido? Se conhece eternamente quem pecará, não será Deus como o fatum e a moira? E como falar na liberdade e no livre-arbítrio do pecador, se desde a eternidade Deus sabia que ele cometeria o pecado?


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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