A falta
Há religiões da exterioridade e
da interioridade. Nas primeiras, a falta ou pecado é uma ação externa visível,
cometida voluntária ou involuntariamente contra a divindade. A falta é irreverência, sentida sob a forma de vergonha, trazendo como conseqüência
uma impureza que contamina o faltoso
e o grupo, exigindo rituais de purificação.
Nas religiões da interioridade,
como é o caso do cristianismo, a falta ou pecado é uma ação interna invisível
(mesmo que resulte num ato externo visível), causada por uma vontade má – nesse
caso, a falta é um crime – ou por um
entendimento equivocado – nesse caso, a falta é um erro. É uma transgressão
experimentada na forma de culpa,
exigindo expiação.
Nas religiões da exterioridade,
o perdão depende exclusivamente de uma graça, isto é, a divindade pode ou não
perdoar, independentemente dos rituais de purificação realizados pelo indivíduo
ou pelo grupo. Nas religiões da interioridade, o perdão – que virá na forma de
graça – exige uma experiência interior precisa, o arrependimento.
Nas religiões da exterioridade –
como a grega, a romana, as africanas e indígenas -, a falta é causada por uma
fatalidade. O fatum (destino, em
latim; fado, em português) ou a moira
(destino fatal, em grego) determinou desde sempre que ela seria cometida por
alguém, para desgraça sua e de seu grupo. A falta não depende da vontade do
agente, mas de uma decisão divina. É assim, por exemplo, que Édipo cumprirá seu
destino.
Nas religiões da interioridade –
como é o caso do judaísmo e do cristianismo -, a falta nasce da liberdade do
agente, que, conhecendo o bem e o mal (a lei divina), transgride consciente e
voluntariamente o decreto de Deus. Sem dúvida, para o cristianismo, a falta é
um problema teológico insolúvel, pois o Deus cristão é onipotente e onisciente,
sabendo tudo desde a eternidade e, portanto, conhecendo previamente o pecador.
Se pune o pecado, mas sabia que seria cometido, não seria injusto por não
impedir que seja cometido? Se conhece eternamente quem pecará, não será Deus
como o fatum e a moira? E como falar na liberdade e no livre-arbítrio do pecador, se
desde a eternidade Deus sabia que ele cometeria o pecado?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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