"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Mythos e logos


Na maioria das culturas, a religião se apresenta como sistema explicativo geral, oferecendo causas e efeitos, relações entre seres, valores morais e também sustentação ao poder político. Nela se efetiva uma visão de mundo única, válida para toda a sociedade e fornecendo a seus membros uma comunidade de ação e de destino.
No caso da cultura ocidental, porém, a religião tornou-se apenas mais um sistema explicativo da realidade, entre outros. A ruptura com o mythos, efetuada pelo surgimento e desenvolvimento do logos, isto é, do pensamento racional, desfez o privilégio da religião como visão de mundo única. Filosofia e ciência elaboraram explicações cujos princípios são completamente diferentes dos da religião.  

Vimos as principais características do pensamento filosófico e quando a Filosofia nasce na Grécia. Vimos também os traços que constituem o ideal científico. Diante dessas duas formas de conhecimento, o mito se apresenta como radicalmente distinto. Embora isso já tenha sido analisado anteriormente (veja-se sobretudo a Unidade 4, capítulos 5 e 6), vamos recapitular essa distinção:
mythos – é uma fala, um relato ou uma narrativa, cujo tema principal é a origem (origem do mundo, dos homens, das técnicas, dos deuses, das relações entre homens e deuses, etc.);
● não se define pelo objeto da narrativa ou do relato, mas pelo modo como narra ou pelo modo como profere a mensagem, de sorte que qualquer tema e qualquer ser podem ser objeto de mito: tornam-se míticos ao se transformarem em valores e símbolos sagrados;
● tem como função resolver, num plano simbólico e imaginário, as antinomias, as tensões, os conflitos e as contradições da realidade social que não podem ser resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade, criando, assim, uma segunda realidade, que explica a origem do problema e o resolve de modo que a realidade possa continuar com o problema sem ser destruída por ele. O mito cria uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades, tensões e lutas reais tidas como insolúveis;
● consegue essa solução imaginária porque opera com a lógica invisível e subjacente à organização social. Ou seja, conflitos, tensões, lutas e antinomias não são visíveis e perceptíveis, mas invisíveis e imperceptíveis, comandando o funcionamento visível da organização social. O mito se refere a esse fundo invisível e tenso e o resolve imaginariamente para garantir a permanência da organização. Além de ser uma lógica da compensação, é uma lógica da conservação do social, instrumento para evitar a mudança e a desagregação do grupo. Em outras palavras, é elaborado para ocultar a experiência da História ou do tempo;
● não é apenas efeito das causas sociais, mas torna-se causa também, isto é, uma vez elaborado, passa a produzir efeitos sociais: instituições, comportamentos, sentimentos, etc. É uma ação social com efeitos sociais;
● ultrapassa as fronteiras da sociedade onde foi suscitado, pois sua explicação visa a exprimir estruturas universais do espírito humano e do mundo. Assim, por exemplo, os mitos teogônicos e cosmogônicos concernentes à proibição do incesto, embora referentes às necessidades internas de uma sociedade para a elaboração das leis de parentesco e do sistema de alianças, ressurge em todas as sociedades, exprimindo uma estrutura universal da Cultura;
● revela uma estrutura inconsciente da sociedade, de tal modo que é possível distinguir a estrutura inconsciente universal e as mensagens particulares que cada sociedade inventa para resolver as tensões e os conflitos ou contradições inconscientes. O mito conta uma história dramática, na qual a ordem do mundo (o reino mineral, vegetal, animal e humano) foi criada e constituída.
Os acontecimentos narrados exprimem, simultaneamente, uma estrutura geral do pensamento humano e uma solução parcial que uma sociedade determinada encontrou para o problema. Assim, a diferença homem-vegetal, homem-animal, homem-mulher, vida-morte, treva-luz é uma diferença que atormenta universalmente todas as culturas, mas cada uma delas possui uma narrativa mítica específica para responder a esse tormento;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o discurso mítico opera, segundo Lévi-Strauss, pelo mecanismo do bricolage, isto é, assim como alguém junta pedaços e partes de objetos antigos para fazer um objeto novo, no qual se podem perceber as partes ou pedaços dos objetos anteriores, assim também o mythos constrói sua narrativa, não como o logos, elaborando de ponta a ponta seu objeto como algo específico, mas como um arranjo e uma construção com pedaços de narrativas já existentes.
O logos busca a coerência, construindo conceitualmente seu objeto, enquanto o mythos fabrica seu objeto pela reunião e composição de restos díspares e disparatados do mundo existente, dando-lhes unidade num novo sistema explicativo, no qual adquirem significado simbólico. O logos procura a unidade sob a diversidade e a multiplicidade; o mythos faz exatamente o oposto, isto é, procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade. É um pensamento empírico e concreto, e não um pensamento conceitual e abstrato;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o mito se mostra uma operação linguística oposta ao logos. Este purifica a linguagem dos elementos qualitativos e emotivos, busca retirar tanto quanto possível a ambiguidade dos termos que emprega, utilizando provas, demonstrações e argumentos racionais. O mito, ao contrário, opera por metaforização contínua, isto é, um mesmo significante (palavra ou conjunto de palavras) tenderá a possuir um número imenso de significações ou de sentidos.
O mito opera com a saturação do sentido, ou seja, um mesmo fato pode ser narrado de inúmeras maneiras diferentes, dependendo do que se queira enfatizar, e as coisas do mundo (minerais, vegetais, animais, humanos) podem receber inúmeros sentidos, conforme o lugar que ocupem na narrativa. Assim, a oposição vida-morte, homem-mulher, humano-animal, luz-treva, quente-frio, seco-úmido, bom-mau, justo-injusto, certo-errado, grande-pequeno, cru-cozido, pai-mãe, irmã-irmão, pai-filho, pai-filha, mãe-filho, mãe-filha, etc. serão oposições constantes e regulares em todos os mitos, mas os conteúdos que as exprimem são inumeráveis.
Ao instaurar a ruptura entre mythos e logos, a cultura ocidental provocou um acontecimento desconhecido em outras culturas: o conflito entre a fé e a razão, que se manifestou desde muito cedo. Já na Grécia antiga, as críticas de Heráclito, Pitágoras e Xenófanes à religião assinalavam a ruptura com ela. Mais tarde, Atenas forçou o filósofo Anaxágoras a fugir para evitar a condenação pública, acusado pelo tribunal ateniense de “inventar um novo deus”; Sócrates, julgado culpado de impiedade e de corrupção da juventude, foi condenado à morte.
Na Renascença, Giordano Bruno, que afirmara a imanência da Inteligência infinita ao mundo (“o Uno é forma e matéria, figura da Natureza inteira, operando de seu interior”, dizia ele), foi condenado à fogueira. Galileu, na época moderna, foi forçado a abjurar suas teses sobre o movimento solar, as manchas lunares e solares e o princípio da inércia, fundamento da mecânica clássica.
Nem sempre a Filosofia abandonou os temas da religião. Todavia, ocupou-se deles do ponto de vista do logos e não do mythos. Assim procedendo, despojou-os de sua condição de mistérios para transformá-los em conceitos e teorias. Para a alma religiosa, há um Deus; para a Filosofia, é preciso provar a existência da divindade. Para a alma piedosa, Deus é um ente perfeito, bom e misericordioso, mas justo, punindo os maus e recompensando os bons. Para a Filosofia, Deus é uma substância infinita, mas é preciso demonstrar que sua essência é constituída por um intelecto onisciente e uma vontade onipotente.
Para o crente, a espiritualidade divina não é incompatível com a esperança de poder ver Deus atuar materialmente sobre o mundo, realizando milagres; para a Filosofia, é preciso demonstrar a possibilidade de uma ação do espírito sobre a matéria e por que, sendo Deus onisciente, suspenderia a ordenação necessária do mundo, que Ele próprio estabeleceu, fazendo milagres.
Mais do que isso. Sendo Deus perfeito e infinito, que necessidade teria de criar um mundo material, finito e imperfeito? Como uma causa infinita produz um efeito finito? Mais ainda. Deus é eterno, portanto alheio ao tempo; mas o mundo não é eterno, pois foi criado por Deus e, nesse caso, como um ser eterno realiza uma ação temporal? Como falar em Deus antes do mundo e depois do mundo, se “antes” e “depois” são qualidades do tempo e não da eternidade?
Para o fiel, a alma é imortal e destinada a uma vida futura; para a Filosofia, cabe oferecer provas que demonstrem a imortalidade.
Os místicos experimentam a fusão plena no seio de Deus, sentem estar nele e nele viver. Para a Filosofia, não sentimos Deus, mas o conhecemos pela razão.
Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião. De fato, para competir com a Filosofia e suplantá-la, a religião precisou oferecer-se sob a forma de provas racionais, conceitos, teses, teorias. Tornou-se teologia, ciência sobre Deus. Transformou os textos da história sagrada em doutrina.
Todavia, certas crenças religiosas jamais poderão ser transformadas em teses e demonstrações racionais sem serem destruídas. Não há como provar racionalmente que Jeová falou a Moisés, no monte Sinai. Não há como provar racionalmente a virgindade de Maria, a encarnação do Filho de Deus, a Santíssima Trindade, a Eucaristia. São verdades da fé e, como tais, mistérios. Estes são verdades inquestionáveis, isto é, dogmas. Eis por que o apóstolo Paulo declarou que “a razão é um escândalo para a fé”.
Tomemos um exemplo do Antigo Testamento. Ali é narrado que, durante uma batalha, Josué fez o Sol parar, a fim de que, com o prolongamento do dia, pudesse vencer a guerra. Essa história sagrada pressupõe que o Sol se movimenta em torno da Terra e que esta permanece imóvel. Estando narrada no texto revelado pelo próprio Deus, a história de Josué não pode ser contestada.
A mesma teoria da mobilidade do Sol e imobilidade da Terra existia como tese filosófico-científica no pensamento de Aristóteles e, como tal, foi refutada pela ciência de Copérnico, Galileu e Kepler. Porém, se a estes era permitido refutar uma teoria filosófico-científica por meio de outra, não lhes era permitido negar a história de Josué. Eis por que, durante séculos, a Igreja considerou o heliocentrismo uma heresia, condenou-a e submeteu sábios, como Galileu, aos tribunais da Inquisição.
Um outro exemplo, agora vindo da biologia, vai na mesma direção: a teoria da evolução, de Darwin, que demonstra a origem do homem a partir de primatas. A Bíblia afirma que o homem foi criado diretamente por Deus, à sua imagem e semelhança, no sexto dia da criação. Sob essa perspectiva, a teoria darwiniana foi considerada heresia, condenada e, durante anos, não pôde ser ensinada nas escolas cristãs, tendo mesmo havido um caso, nos Estados Unidos, de um professor primário processado por um tribunal por ensiná-la.
Um exemplo, agora vindo do Novo Testamento, apresenta o mesmo problema. Historiadores, linguistas e antropólogos fizeram estudos sobre as culturas de toda a região do Oriente Médio e do norte da África, nelas encontrando uma referência constante ao pão, ao vinho, ao cordeiro imolado e ao deus morto e ressuscitado. Eram culturas de uma sociedade agrária, com ritos de fertilidade da terra e dos animais, realizando cerimônias muito semelhantes às que seriam realizadas, depois, pela missa cristã. Desse ponto de vista, o ritual da missa pertence a uma tradição religiosa agrária, oriental e africana, muito anterior ao cristianismo. Essa descoberta científica, porém, contraria as verdades cristãs, na medida em que a missa é considerada liturgia que repete e rememora um conjunto único e novo de eventos relativos à vida, paixão e morte de Jesus.
Poderíamos prosseguir com os exemplos, mas não é necessário. O que queremos destacar aqui é a peculiaridade da relação que, na cultura ocidental, criadora da Filosofia e da ciência, se estabeleceu entre a razão e a fé. As dificuldades dessa relação ocuparam os medievais, modernos e nossos contemporâneos, parecendo insolúveis.
A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo, enquanto ambas acusam a religião de dogmatismo, atraso e intolerância.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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