Mythos e logos
Na maioria das culturas, a
religião se apresenta como sistema explicativo geral, oferecendo causas e
efeitos, relações entre seres, valores morais e também sustentação ao poder
político. Nela se efetiva uma visão de
mundo única, válida para toda a sociedade e fornecendo a seus membros uma
comunidade de ação e de destino.
No caso da cultura ocidental,
porém, a religião tornou-se apenas mais um sistema explicativo da realidade,
entre outros. A ruptura com o mythos,
efetuada pelo surgimento e desenvolvimento do logos, isto é, do pensamento racional, desfez o privilégio da
religião como visão de mundo única.
Filosofia e ciência elaboraram explicações cujos princípios são completamente
diferentes dos da religião.
Vimos as principais
características do pensamento filosófico e quando a Filosofia nasce na Grécia.
Vimos também os traços que constituem o ideal científico. Diante dessas duas
formas de conhecimento, o mito se apresenta como radicalmente distinto. Embora
isso já tenha sido analisado anteriormente (veja-se sobretudo a Unidade 4,
capítulos 5 e 6), vamos recapitular essa distinção:
● mythos – é uma fala, um relato
ou uma narrativa, cujo tema principal é a origem
(origem do mundo, dos homens, das técnicas, dos deuses, das relações entre
homens e deuses, etc.);
● não se define pelo objeto da narrativa ou do relato, mas pelo modo como narra ou pelo modo como profere a mensagem, de
sorte que qualquer tema e qualquer ser podem ser objeto de mito: tornam-se
míticos ao se transformarem em valores e símbolos sagrados;
● tem como função resolver, num plano simbólico e imaginário, as antinomias,
as tensões, os conflitos e as contradições da realidade social que não podem
ser resolvidas ou solucionadas pela própria sociedade, criando, assim, uma
segunda realidade, que explica a origem do problema e o resolve de modo que a
realidade possa continuar com o problema sem ser destruída por ele. O mito cria
uma compensação simbólica e imaginária para dificuldades, tensões e lutas reais
tidas como insolúveis;
● consegue essa solução imaginária porque opera com a lógica invisível e
subjacente à organização social. Ou seja, conflitos, tensões, lutas e
antinomias não são visíveis e perceptíveis, mas invisíveis e imperceptíveis,
comandando o funcionamento visível da organização social. O mito se refere a
esse fundo invisível e tenso e o resolve imaginariamente para garantir a
permanência da organização. Além de ser uma lógica da compensação, é uma lógica
da conservação do social, instrumento para evitar a mudança e a desagregação do
grupo. Em outras palavras, é elaborado para ocultar a experiência da História
ou do tempo;
● não é apenas efeito das causas sociais, mas torna-se causa também, isto
é, uma vez elaborado, passa a produzir efeitos sociais: instituições,
comportamentos, sentimentos, etc. É uma ação social com efeitos sociais;
● ultrapassa as fronteiras da sociedade onde foi suscitado, pois sua
explicação visa a exprimir estruturas universais do espírito humano e do mundo.
Assim, por exemplo, os mitos teogônicos e cosmogônicos concernentes à proibição
do incesto, embora referentes às necessidades internas de uma sociedade para a
elaboração das leis de parentesco e do sistema de alianças, ressurge em todas
as sociedades, exprimindo uma estrutura universal da Cultura;
● revela uma estrutura inconsciente da sociedade, de tal modo que é
possível distinguir a estrutura inconsciente universal e as mensagens
particulares que cada sociedade inventa para resolver as tensões e os conflitos
ou contradições inconscientes. O mito conta uma história dramática, na qual a
ordem do mundo (o reino mineral, vegetal, animal e humano) foi criada e
constituída.
Os acontecimentos narrados exprimem, simultaneamente, uma estrutura geral
do pensamento humano e uma solução parcial que uma sociedade determinada
encontrou para o problema. Assim, a diferença homem-vegetal, homem-animal,
homem-mulher, vida-morte, treva-luz é uma diferença que atormenta
universalmente todas as culturas, mas cada uma delas possui uma narrativa
mítica específica para responder a esse tormento;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o discurso mítico opera,
segundo Lévi-Strauss, pelo mecanismo do bricolage,
isto é, assim como alguém junta pedaços e partes de objetos antigos para fazer
um objeto novo, no qual se podem perceber as partes ou pedaços dos objetos
anteriores, assim também o mythos
constrói sua narrativa, não como o logos,
elaborando de ponta a ponta seu objeto como algo específico, mas como um
arranjo e uma construção com pedaços de narrativas já existentes.
O logos busca a coerência,
construindo conceitualmente seu objeto, enquanto o mythos fabrica seu objeto pela reunião e composição de restos
díspares e disparatados do mundo existente, dando-lhes unidade num novo sistema
explicativo, no qual adquirem significado simbólico. O logos procura a unidade sob a diversidade e a multiplicidade; o mythos faz exatamente o oposto, isto é,
procura a multiplicidade e a diversidade sob a unidade. É um pensamento
empírico e concreto, e não um pensamento conceitual e abstrato;
● comparado ao discurso filosófico e científico, o mito se mostra uma
operação linguística oposta ao logos.
Este purifica a linguagem dos elementos qualitativos e emotivos, busca retirar
tanto quanto possível a ambiguidade dos termos que emprega, utilizando provas,
demonstrações e argumentos racionais. O mito, ao contrário, opera por
metaforização contínua, isto é, um mesmo significante (palavra ou conjunto de
palavras) tenderá a possuir um número imenso de significações ou de sentidos.
O mito opera com a saturação do sentido, ou seja, um mesmo fato pode ser
narrado de inúmeras maneiras diferentes, dependendo do que se queira enfatizar,
e as coisas do mundo (minerais, vegetais, animais, humanos) podem receber
inúmeros sentidos, conforme o lugar que ocupem na narrativa. Assim, a oposição
vida-morte, homem-mulher, humano-animal, luz-treva, quente-frio, seco-úmido,
bom-mau, justo-injusto, certo-errado, grande-pequeno, cru-cozido, pai-mãe,
irmã-irmão, pai-filho, pai-filha, mãe-filho, mãe-filha, etc. serão oposições
constantes e regulares em todos os mitos, mas os conteúdos que as exprimem são
inumeráveis.
Ao instaurar a ruptura entre mythos
e logos, a cultura ocidental provocou
um acontecimento desconhecido em outras culturas: o conflito entre a fé e a
razão, que se manifestou desde muito cedo. Já na Grécia antiga, as críticas de
Heráclito, Pitágoras e Xenófanes à religião assinalavam a ruptura com ela. Mais
tarde, Atenas forçou o filósofo Anaxágoras a fugir para evitar a condenação
pública, acusado pelo tribunal ateniense de “inventar um novo deus”; Sócrates,
julgado culpado de impiedade e de corrupção da juventude, foi condenado à
morte.
Na Renascença, Giordano Bruno, que afirmara a imanência da Inteligência
infinita ao mundo (“o Uno é forma e matéria, figura da Natureza inteira,
operando de seu interior”, dizia ele), foi condenado à fogueira. Galileu, na
época moderna, foi forçado a abjurar suas teses sobre o movimento solar, as
manchas lunares e solares e o princípio da inércia, fundamento da mecânica
clássica.
Nem sempre a Filosofia abandonou os temas da religião. Todavia, ocupou-se
deles do ponto de vista do logos e
não do mythos. Assim procedendo,
despojou-os de sua condição de mistérios para transformá-los em conceitos e
teorias. Para a alma religiosa, há um Deus; para a Filosofia, é preciso provar
a existência da divindade. Para a alma piedosa, Deus é um ente perfeito, bom e
misericordioso, mas justo, punindo os maus e recompensando os bons. Para a
Filosofia, Deus é uma substância infinita, mas é preciso demonstrar que sua
essência é constituída por um intelecto onisciente e uma vontade onipotente.
Para o crente, a espiritualidade divina não é incompatível com a esperança
de poder ver Deus atuar materialmente sobre o mundo, realizando milagres; para
a Filosofia, é preciso demonstrar a possibilidade de uma ação do espírito sobre
a matéria e por que, sendo Deus onisciente, suspenderia a ordenação necessária
do mundo, que Ele próprio estabeleceu, fazendo milagres.
Mais do que isso. Sendo Deus perfeito e infinito, que necessidade teria de
criar um mundo material, finito e imperfeito? Como uma causa infinita produz um
efeito finito? Mais ainda. Deus é eterno, portanto alheio ao tempo; mas o mundo
não é eterno, pois foi criado por Deus e, nesse caso, como um ser eterno
realiza uma ação temporal? Como falar em Deus antes do mundo e depois
do mundo, se “antes” e “depois” são qualidades do tempo e não da eternidade?
Para o fiel, a alma é imortal e destinada a uma vida futura; para a
Filosofia, cabe oferecer provas que demonstrem a imortalidade.
Os místicos experimentam a fusão plena no seio de Deus, sentem estar nele e
nele viver. Para a Filosofia, não
sentimos Deus, mas o conhecemos pela razão.
Essa peculiaridade da cultura ocidental afetou a própria religião. De fato,
para competir com a Filosofia e suplantá-la, a religião precisou oferecer-se
sob a forma de provas racionais, conceitos, teses, teorias. Tornou-se teologia, ciência sobre Deus.
Transformou os textos da história sagrada em doutrina.
Todavia, certas crenças religiosas jamais poderão ser transformadas em
teses e demonstrações racionais sem serem destruídas. Não há como provar
racionalmente que Jeová falou a Moisés, no monte Sinai. Não há como provar
racionalmente a virgindade de Maria, a encarnação do Filho de Deus, a
Santíssima Trindade, a Eucaristia. São verdades da fé e, como tais, mistérios.
Estes são verdades inquestionáveis, isto é, dogmas. Eis por que o apóstolo
Paulo declarou que “a razão é um escândalo para a fé”.
Tomemos um exemplo do Antigo Testamento. Ali é narrado que, durante uma
batalha, Josué fez o Sol parar, a fim de que, com o prolongamento do dia,
pudesse vencer a guerra. Essa história sagrada pressupõe que o Sol se movimenta
em torno da Terra e que esta permanece imóvel. Estando narrada no texto
revelado pelo próprio Deus, a história de Josué não pode ser contestada.
A mesma teoria da mobilidade do Sol e imobilidade da Terra existia como
tese filosófico-científica no pensamento de Aristóteles e, como tal, foi
refutada pela ciência de Copérnico, Galileu e Kepler. Porém, se a estes era
permitido refutar uma teoria filosófico-científica por meio de outra, não lhes
era permitido negar a história de Josué. Eis por que, durante séculos, a Igreja
considerou o heliocentrismo uma heresia, condenou-a e submeteu sábios, como
Galileu, aos tribunais da Inquisição.
Um outro exemplo, agora vindo da biologia, vai na mesma direção: a teoria
da evolução, de Darwin, que demonstra a origem do homem a partir de primatas. A
Bíblia afirma que o homem foi criado diretamente por Deus, à sua imagem e
semelhança, no sexto dia da criação. Sob essa perspectiva, a teoria darwiniana
foi considerada heresia, condenada e, durante anos, não pôde ser ensinada nas
escolas cristãs, tendo mesmo havido um caso, nos Estados Unidos, de um professor
primário processado por um tribunal por ensiná-la.
Um exemplo, agora vindo do Novo Testamento, apresenta o mesmo problema.
Historiadores, linguistas e antropólogos fizeram estudos sobre as culturas de
toda a região do Oriente Médio e do norte da África, nelas encontrando uma
referência constante ao pão, ao vinho, ao cordeiro imolado e ao deus morto e
ressuscitado. Eram culturas de uma sociedade agrária, com ritos de fertilidade
da terra e dos animais, realizando cerimônias muito semelhantes às que seriam
realizadas, depois, pela missa cristã. Desse ponto de vista, o ritual da missa
pertence a uma tradição religiosa agrária, oriental e africana, muito anterior
ao cristianismo. Essa descoberta científica, porém, contraria as verdades cristãs,
na medida em que a missa é considerada liturgia que repete e rememora um
conjunto único e novo de eventos relativos à vida, paixão e morte de Jesus.
Poderíamos prosseguir com os exemplos, mas não é necessário. O que queremos
destacar aqui é a peculiaridade da relação que, na cultura ocidental, criadora
da Filosofia e da ciência, se estabeleceu entre a razão e a fé. As dificuldades
dessa relação ocuparam os medievais, modernos e nossos contemporâneos,
parecendo insolúveis.
A religião acusa a Filosofia e a ciência de heresia e ateísmo, enquanto
ambas acusam a religião de dogmatismo, atraso e intolerância.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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