Natureza Humana?
Natureza humana?
É muito comum ouvirmos e
dizermos frases do tipo: “chorar é próprio da natureza humana” e “homem não
chora”. Ou então: “é da natureza humana ter medo do desconhecido” e “ela é
corajosa, não tem medo de nada”. Também é comum a frase: “as mulheres são
naturalmente frágeis e sensíveis, porque nasceram para a maternidade”, bem como
esta outra: “fulana é uma desnaturada, pois não tem o menor amor aos filhos”.
Com freqüência ouvimos dizer:
“os homens são fortes e racionais, feitos para o comando e a vida pública”,
donde, como conseqüência, esta outra frase: “fulana nem parece mulher. Veja
como se veste! Veja o emprego que arranjou!”. Não é raro escutarmos que os
negros são indolentes por natureza, os pobres são naturalmente violentos, os
judeus são naturalmente avarentos, os árabes são naturalmente comerciantes espertos,
os franceses são naturalmente interessados em sexo e os ingleses são, por
natureza, fleumáticos.
Frases como essas, e muitas
outras, pressupõem, por um lado, que existe uma natureza humana, a mesma em
todos os tempos e lugares e, por outro lado, que existe uma diferença de
natureza entre homens e mulheres, pobres e ricos, negros, índios, judeus,
árabes, franceses ou ingleses. Haveria, assim, uma natureza humana universal e
uma natureza humana diferenciada por espécies, à maneira da diferença entre
várias espécies de plantas ou de animais.
Em outras palavras, a Natureza
teria feito o gênero humano
universal e as espécies humanas
particulares, de modo que certos sentimentos, comportamentos, idéias e valores
são os mesmos para todo o gênero humano (são naturais para todos os humanos),
enquanto outros seriam os mesmos apenas para cada espécie (ou raça, ou tipo, ou
grupo), isto é, para uma espécie determinada.
Dizer que alguma coisa é natural
ou por natureza significa dizer que essa coisa existe necessária e
universalmente como efeito de uma causa necessária e universal. Essa causa é a
Natureza. Significa dizer, portanto, que tal coisa não depende da ação e
intenção dos seres humanos. Assim como é da natureza dos corpos serem
governados pela lei natural da gravitação universal, como é da natureza da água
ser composta por H2O, ou como é da natureza da abelha produzir mel e
da roseira produzir rosas, também seria por natureza que os homens sentem,
pensam e agem. A Natureza teria feito a natureza humana como gênero universal e
a teria diversificado por espécies naturais (brancos, negros, índios, pobres,
ricos, judeus, árabes, homens, mulheres, alemães, japoneses, chineses, etc.).
Que aconteceria com as frases
que mencionamos acima se mostrássemos que algumas delas são contraditórias e
que outras não correspondem aos fatos da realidade?
Assim, por exemplo, dizer que “é
natural chorar na tristeza” entra em contradição com a ideia de que “homem não
chora”, pois, se isso fosse verdade, o homem teria que ser considerado algo que
escapa das leis da Natureza, já que chorar é considerado natural. O mesmo
acontece com a frase sobre o medo e a coragem: nelas é dito que o medo é
natural, mas que uma certa pessoa é admirável porque não tem medo. Aqui, a
contradição é ainda maior do que a anterior, uma vez que parecemos ter
admiração por quem, misteriosamente, escapa da lei da Natureza, isto é, do
medo.
Em certas sociedades, o sistema
de alianças, que fundamenta as relações de parentesco sobre as quais a
comunidade está organizada, exige que a criança seja levada, ao nascer, à irmã
do pai, que deverá responsabilizar-se pela vida e educação da criança. Em
outras, o sistema de parentesco exige que a criança seja entregue à irmã da
mãe. Nos dois casos, a relação da criança é estabelecida com a tia por aliança
e não com a mãe biológica. Se assim é, como fica a afirmação de que as mulheres
amam naturalmente os seus filhos e que é desnaturada a mulher que não
demonstrar esse amor?
Em certas sociedades,
considera-se que a mulher é impura para lidar com a terra e com os alimentos.
Por esse motivo, o cultivo da terra, a alimentação e a casa ficam sob os
cuidados dos homens, cabendo às mulheres a guerra e o comando da comunidade. Se
assim é, como fica a frase que afirma que o homem foi feito pela Natureza para
o que exige força e coragem, para o comando e a guerra, enquanto a mulher foi
feita pela Natureza para a maternidade, a casa, o trabalho doméstico, as
atividades de um ser frágil e sensível?
Os historiadores brasileiros
mostram que, por razões econômicas, a elite dominante do século XIX considerou
mais lucrativo realizar a abolição da escravatura e substituir os escravos
africanos pelos imigrantes europeus. Essa decisão fez com que o mercado de
trabalho fosse ocupado pelos trabalhadores brancos imigrantes e que a maioria
dos escravos libertados ficasse no desemprego, sem habitação, sem alimentação e
sem qualquer direito social, econômico e político.
Em outras palavras, foram
impedidos de trabalhar e foram mantidos sem direitos, tais como viviam quando
estavam no cativeiro. Além disso, sabe-se que quando os colonizadores
instituíram a escravidão e trouxeram os africanos para as terras da América,
fizeram tal escolha por considerarem que os negros possuíam grande força
física, grande capacidade de trabalho e muita inteligência para realizar
tarefas com objetos técnicos como o engenho de açúcar. Se assim é, se a
escravidão foi instituída por causa da grande capacidade e inteligência dos
africanos para o trabalho da agricultura, se a abolição foi realizada por ser
mais lucrativo o uso da mão-de-obra imigrante para um certo tipo de agricultura
(o café) e para a indústria, como fica a afirmação de que a Natureza fez os
africanos indolentes, preguiçosos e malandros?
Poderíamos examinar cada uma das
frases que dizemos ou ouvimos em nosso cotidiano e que naturalizam os seres
humanos, naturalizam comportamentos, idéias, valores, formas de viver e de
agir. Veríamos como, em cada caso, os fatos desmentem tal naturalização.
Veríamos como os seres humanos variam em conseqüência das condições sociais,
econômicas, políticas, históricas em que vivem. Veríamos que somos seres cuja
ação determina o modo de ser, agir e pensar e que a ideia de um gênero humano
natural e de espécies humanas naturais não possui fundamento na realidade.
Veríamos – graças às ciências humanas e à Filosofia – que a ideia de natureza
humana como algo universal, intemporal e existente em si e por si mesma não se
sustenta cientificamente, filosoficamente e empiricamente. Por quê? Porque os
seres humanos são culturais ou históricos.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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