Transcendência e hierarquia
Vimos que, pela lei divina, é
instituída a ordem do mundo natural e humano. Vimos também que o conhecimento
dessa lei tende a tornar-se um conhecimento especial, seja porque somente
alguns são escolhidos para conhecê-la, seja porque o texto da lei é
incompreensível e exige pessoas capazes de fazer a interpretação (profetas e
videntes), seja ainda porque a própria interpretação é obscura e exige novos
intérpretes.
Constatamos que o conhecimento
da lei e da vontade divinas são essenciais para a narrativa da história sagrada
e para a realização correta e eficaz dos ritos. Como conseqüência, as religiões
tendem a instituir um grupo de indivíduos, separados do restante da comunidade,
encarregados de transmitir a história sagrada, interpretar a lei e os sinais
divinos, realizar os ritos e marcar o espaço-tempo sagrados.
Magos, astrólogos, videntes,
profetas, xamãs, sacerdotes e pajés possuem saberes e poderes especiais. São
capazes de curar, de prever o futuro, de aplacar a cólera dos deuses, de
anunciar a vontade divina, de destruir a distância (por meio de palavras e
gestos). Inicialmente, sua função é trazer o sagrado para o grupo e aí
conservá-lo. Pouco a pouco, porém, formam um grupo separado, uma classe social,
com exigências e poderes próprios, privam a comunidade da presença direta do
sagrado e distorcem a função originária que possuíam, transformando-a em
domínio e poder sobre a comunidade. Tornam-se os portadores simbólicos do
sagrado e mediadores indispensáveis.
A religião, como já observamos,
realiza o encantamento do mundo, explicando-o pelo maravilhoso e misterioso. O
grupo que detém o saber misterioso, ao tornar-se detentor do poder, possui o
poder mais alto: o de encantar, desencantar e reencantar o mundo. Por isso, num
primeiro momento, o poder religioso concentra-se nas mãos de um só, que possui
também a autoridade militar e o domínio econômico sobre toda a comunidade.
À medida que as relações sociais
se tornam mais complexas, com divisões sociais do trabalho e da propriedade, o
poder passa por uma divisão: um grupo detém a autoridade religiosa e outro, a
militar e econômica. Porém, todo o saber da comunidade – história sagrada,
interpretação da lei divina, rituais – encontra-se nas mãos da autoridade religiosa,
que passa, dessa maneira, a ser o braço intelectual e jurídico indispensável da
autoridade econômica e militar.
Nas religiões da transcendência,
três são as conseqüências principais desse desenvolvimento histórico:
1. a formação de uma autoridade
que detém o privilégio do saber, porque conhece a vontade divina e suas leis.
Com ela, surge a instituição sacerdotal e eclesiástica. Não por acaso, Cícero
dirá que a palavra religião vem do
verbo legere, ler. Os sacerdotes são
intelectuais. O grupo sacerdotal detém vários saberes: o da história sagrada, o
dos rituais, o das leis divinas, pelas quais é imposta a moralidade ao grupo.
Como esses saberes se referem ao divino, constituem a teologia. Os sacerdotes,
ou uma parte deles, são teólogos. Tais saberes lhes dão os seguintes poderes:
● mágico: são os únicos que
conhecem e sabem manipular os vínculos secretos entre as coisas;
● divinatório: são os únicos
capazes de prever os acontecimentos pela interpretação dos astros, de sinais e
das entranhas dos animais;
● propiciatório: são os únicos
capazes de realizar os ritos de maneira correta e adequada para obtenção dos
favores divinos;
● punitivo: são os únicos que
conhecem as leis divinas e podem punir os transgressores ou infiéis.
2. a formulação de uma doutrina religiosa baseada na ideia de hierarquia, isto é, de uma realidade
organizada sob a forma de graus superiores e inferiores onde se situam todos os
seres, por vontade divina. Os entes se distinguem por sua proximidade ou
distância dos deuses, segundo o lugar hierárquico, fixo e imutável, que lhes
foi destinado.
Assim, por exemplo, certas religiões podem considerar certos animais mais
próximos dos deuses, sendo por isso mais poderosos, mais sábios e melhores do
que todos os outros entes. Algumas podem considerar as entidades imateriais
superiores e as materiais ou corporais, inferiores. Outras podem considerar os
humanos o grau mais alto da hierarquia, todos os outros seres estando
subordinados a eles e devendo-lhes obediência.
Nas religiões politeístas, a hierarquia começa pelos próprios deuses,
havendo deuses superiores e inferiores. Nas religiões monoteístas, a hierarquia
coloca a divindade no topo de uma escala e os demais seres são ordenados
segundo sua maior ou menor semelhança com ela. Assim, por exemplo, no
cristianismo, há uma hierarquia celeste (anjos, arcanjos, querubins, serafins,
tronos, potestades e os santos) e uma hierarquia terrestre (homens, animais,
plantas, minerais), estando abaixo dela os demônios e as trevas. A noção de
hierarquia introduz as noções de superior e inferior, definindo a relação entre
ambos pelo mando e a obediência. Dessa maneira, a religião organiza o mundo e,
com isso, a sociedade. Evidentemente, os que se ocupam com as coisas sagradas
estão no topo da hierarquia humana e todos os outros lhes devem obediência.
3. o privilégio do uso da violência sagrada para punir os faltosos ou
pecadores. Inicialmente, exigia-se que todos os membros da comunidade fossem
piedosos, isto é, respeitassem deuses, tabus, rituais e a memória dos antepassados.
Com o surgimento da classe sacerdotal, passa-se a exigir que esses membros da
comunidade – os sacerdotes – sejam castos, isto é, possuam integridade corporal
e espiritual para oficiar os ritos e interpretar as leis. Na qualidade de
castos, são os mais puros e por isso investidos, após educação e iniciação, do
poder de purificação. Detêm o poder judiciário.
Nas religiões da interioridade, como é o caso do cristianismo, o privilégio
judiciário e da violência sagrada é exercido não só sobre o corpo e o
comportamento dos fiéis, mas sobretudo sobre as almas. Como isso é possível?
No caso do catolicismo, por exemplo, isso é feito por meio de dois
procedimentos principais. Em primeiro lugar, por meio da confissão das faltas
ou dos pecados, feita perante o sacerdote que tem o poder para perdoar ou
absolver, mediante o arrependimento do pecador e das penitências que lhe são
impostas.
Há um código ético-religioso que determina quais são os pecados (pecados
mortais, pecados veniais, pecados capitais), quais os modos de pecar (por ato,
palavras e intenções), qual o dano causado ao pecador e quais as penitências
que deve cumprir. O pecador faz um exame de consciência, confessa ao sacerdote,
tornando visível (por palavras) os segredos de sua alma e entrega-se à misericórdia
de Deus, representado pelo sacerdote que pune e perdoa.
O segundo procedimento é o exame sacerdotal das idéias e das opiniões dos
fiéis.
De fato, o saber religioso cristão está consignado num texto – a Escritura
Sagrada – e num conjunto de textos interpretativos do primeiro – a teologia
racional -, formando a doutrina
cristã. Parte dessa doutrina é constituída por verdades reveladas
compreensíveis para a razão humana, parte é constituída por verdades reveladas
incompreensíveis para a inteligência humana. Essas últimas verdades constituem
os dogmas da fé e não podem ser
questionadas. Questioná-las ou propor-lhes um conteúdo ou significado
diferentes do estabelecido pela doutrina é considerado pecado mortal. Isso
significa que a transgressão religiosa pode ocorrer através do pensamento ou
das idéias. É a heresia (palavra
grega que significa opinião discordante).
A instituição sacerdotal tem o poder para punir heresias e o faz por três
caminhos: a excomunhão (o fiel é banido da comunidade dos crentes e prometido à
punição eterna), a obtenção da confissão de arrependimento do herege (em geral,
obtida por meio de tortura) ou a condenação à morte.
Assim, o sagrado dá origem à religião, enquanto a sociedade faz aparecer o
poder teológico da autoridade religiosa.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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