"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Transcendência e hierarquia


Vimos que, pela lei divina, é instituída a ordem do mundo natural e humano. Vimos também que o conhecimento dessa lei tende a tornar-se um conhecimento especial, seja porque somente alguns são escolhidos para conhecê-la, seja porque o texto da lei é incompreensível e exige pessoas capazes de fazer a interpretação (profetas e videntes), seja ainda porque a própria interpretação é obscura e exige novos intérpretes.
Constatamos que o conhecimento da lei e da vontade divinas são essenciais para a narrativa da história sagrada e para a realização correta e eficaz dos ritos. Como conseqüência, as religiões tendem a instituir um grupo de indivíduos, separados do restante da comunidade, encarregados de transmitir a história sagrada, interpretar a lei e os sinais divinos, realizar os ritos e marcar o espaço-tempo sagrados.
Magos, astrólogos, videntes, profetas, xamãs, sacerdotes e pajés possuem saberes e poderes especiais. São capazes de curar, de prever o futuro, de aplacar a cólera dos deuses, de anunciar a vontade divina, de destruir a distância (por meio de palavras e gestos). Inicialmente, sua função é trazer o sagrado para o grupo e aí conservá-lo. Pouco a pouco, porém, formam um grupo separado, uma classe social, com exigências e poderes próprios, privam a comunidade da presença direta do sagrado e distorcem a função originária que possuíam, transformando-a em domínio e poder sobre a comunidade. Tornam-se os portadores simbólicos do sagrado e mediadores indispensáveis. 

A religião, como já observamos, realiza o encantamento do mundo, explicando-o pelo maravilhoso e misterioso. O grupo que detém o saber misterioso, ao tornar-se detentor do poder, possui o poder mais alto: o de encantar, desencantar e reencantar o mundo. Por isso, num primeiro momento, o poder religioso concentra-se nas mãos de um só, que possui também a autoridade militar e o domínio econômico sobre toda a comunidade.
À medida que as relações sociais se tornam mais complexas, com divisões sociais do trabalho e da propriedade, o poder passa por uma divisão: um grupo detém a autoridade religiosa e outro, a militar e econômica. Porém, todo o saber da comunidade – história sagrada, interpretação da lei divina, rituais – encontra-se nas mãos da autoridade religiosa, que passa, dessa maneira, a ser o braço intelectual e jurídico indispensável da autoridade econômica e militar.
Nas religiões da transcendência, três são as conseqüências principais desse desenvolvimento histórico:

1. a formação de uma autoridade que detém o privilégio do saber, porque conhece a vontade divina e suas leis. Com ela, surge a instituição sacerdotal e eclesiástica. Não por acaso, Cícero dirá que a palavra religião vem do verbo legere, ler. Os sacerdotes são intelectuais. O grupo sacerdotal detém vários saberes: o da história sagrada, o dos rituais, o das leis divinas, pelas quais é imposta a moralidade ao grupo. Como esses saberes se referem ao divino, constituem a teologia. Os sacerdotes, ou uma parte deles, são teólogos. Tais saberes lhes dão os seguintes poderes:
mágico: são os únicos que conhecem e sabem manipular os vínculos secretos entre as coisas;
divinatório: são os únicos capazes de prever os acontecimentos pela interpretação dos astros, de sinais e das entranhas dos animais;
propiciatório: são os únicos capazes de realizar os ritos de maneira correta e adequada para obtenção dos favores divinos;
punitivo: são os únicos que conhecem as leis divinas e podem punir os transgressores ou infiéis.

2. a formulação de uma doutrina religiosa baseada na ideia de hierarquia, isto é, de uma realidade organizada sob a forma de graus superiores e inferiores onde se situam todos os seres, por vontade divina. Os entes se distinguem por sua proximidade ou distância dos deuses, segundo o lugar hierárquico, fixo e imutável, que lhes foi destinado.
Assim, por exemplo, certas religiões podem considerar certos animais mais próximos dos deuses, sendo por isso mais poderosos, mais sábios e melhores do que todos os outros entes. Algumas podem considerar as entidades imateriais superiores e as materiais ou corporais, inferiores. Outras podem considerar os humanos o grau mais alto da hierarquia, todos os outros seres estando subordinados a eles e devendo-lhes obediência.
Nas religiões politeístas, a hierarquia começa pelos próprios deuses, havendo deuses superiores e inferiores. Nas religiões monoteístas, a hierarquia coloca a divindade no topo de uma escala e os demais seres são ordenados segundo sua maior ou menor semelhança com ela. Assim, por exemplo, no cristianismo, há uma hierarquia celeste (anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos, potestades e os santos) e uma hierarquia terrestre (homens, animais, plantas, minerais), estando abaixo dela os demônios e as trevas. A noção de hierarquia introduz as noções de superior e inferior, definindo a relação entre ambos pelo mando e a obediência. Dessa maneira, a religião organiza o mundo e, com isso, a sociedade. Evidentemente, os que se ocupam com as coisas sagradas estão no topo da hierarquia humana e todos os outros lhes devem obediência.
3. o privilégio do uso da violência sagrada para punir os faltosos ou pecadores. Inicialmente, exigia-se que todos os membros da comunidade fossem piedosos, isto é, respeitassem deuses, tabus, rituais e a memória dos antepassados. Com o surgimento da classe sacerdotal, passa-se a exigir que esses membros da comunidade – os sacerdotes – sejam castos, isto é, possuam integridade corporal e espiritual para oficiar os ritos e interpretar as leis. Na qualidade de castos, são os mais puros e por isso investidos, após educação e iniciação, do poder de purificação. Detêm o poder judiciário.
Nas religiões da interioridade, como é o caso do cristianismo, o privilégio judiciário e da violência sagrada é exercido não só sobre o corpo e o comportamento dos fiéis, mas sobretudo sobre as almas. Como isso é possível?
No caso do catolicismo, por exemplo, isso é feito por meio de dois procedimentos principais. Em primeiro lugar, por meio da confissão das faltas ou dos pecados, feita perante o sacerdote que tem o poder para perdoar ou absolver, mediante o arrependimento do pecador e das penitências que lhe são impostas.
Há um código ético-religioso que determina quais são os pecados (pecados mortais, pecados veniais, pecados capitais), quais os modos de pecar (por ato, palavras e intenções), qual o dano causado ao pecador e quais as penitências que deve cumprir. O pecador faz um exame de consciência, confessa ao sacerdote, tornando visível (por palavras) os segredos de sua alma e entrega-se à misericórdia de Deus, representado pelo sacerdote que pune e perdoa.
O segundo procedimento é o exame sacerdotal das idéias e das opiniões dos fiéis.
De fato, o saber religioso cristão está consignado num texto – a Escritura Sagrada – e num conjunto de textos interpretativos do primeiro – a teologia racional -, formando a doutrina cristã. Parte dessa doutrina é constituída por verdades reveladas compreensíveis para a razão humana, parte é constituída por verdades reveladas incompreensíveis para a inteligência humana. Essas últimas verdades constituem os dogmas da fé e não podem ser questionadas. Questioná-las ou propor-lhes um conteúdo ou significado diferentes do estabelecido pela doutrina é considerado pecado mortal. Isso significa que a transgressão religiosa pode ocorrer através do pensamento ou das idéias. É a heresia (palavra grega que significa opinião discordante).
A instituição sacerdotal tem o poder para punir heresias e o faz por três caminhos: a excomunhão (o fiel é banido da comunidade dos crentes e prometido à punição eterna), a obtenção da confissão de arrependimento do herege (em geral, obtida por meio de tortura) ou a condenação à morte.
Assim, o sagrado dá origem à religião, enquanto a sociedade faz aparecer o poder teológico da autoridade religiosa.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

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