A lei divina
Os deuses são poderes
misteriosos. São forças personificadas e por isso são vontades. Misteriosos,
porque suas decisões são imprevisíveis e, muitas vezes, incompreensíveis para
os critérios humanos de avaliação. Vontades, porque o que acontece no mundo
manifesta um querer pessoal, supremo e inquestionável. A religião, ao
estabelecer o laço entre o humano e o divino, procura um caminho pelo qual a
vontade dos deuses seja benéfica e propícia aos seus adoradores.
A vontade divina pode tornar-se
parcialmente conhecida dos humanos sob a forma de leis, isto é, decretos, mandamentos, ordenamentos, comandos
emanados da divindade. Assim como a ordem do mundo decorre dos decretos
divinos, isto é, da lei ordenadora à qual nenhum ser escapa, também o mundo
humano está submetido a mandamentos divinos, dos quais os mais conhecidos, na
cultura ocidental, são os Dez Mandamentos, dados por Jeová a Moisés. Também são
de origem divina as Doze Tábuas da Lei que fundaram a república romana, como
eram de origem divina as leis gregas explicitadas na Ilíada e na Odisséia de
Homero, bem como nas tragédias.
O modo como a vontade divina se
manifesta em leis permite distinguir dois grandes tipos de religião. Há religiões
em que a divindade usa intermediários para revelar a lei. É o caso da religião
judaica, em que Jeová se vale, por exemplo, de Noé, Moisés, Samuel, para dar a
conhecer a lei. Também nessa religião, a divindade não cessa de lembrar ao povo
as leis, sobretudo quando estão sendo transgredidas. Essa rememoração da lei e
das promessas de castigo e redenção nelas contidas é a tarefa do profeta, arauto de Deus. Também na
religião grega, os deuses se valem de intermediários para manifestar sua
vontade. Esta, por ser misteriosa e incompreensível, exige um tipo especial de
intermediário, o vidente, que
interpreta os enigmas divinos, vê o passado e o futuro e os expõe aos homens.
Há religiões, porém, em que os
deuses manifestam sua lei diretamente, sem recorrer a intermediários, isto é,
sem precisar de intérpretes. São religiões da iluminação individual e do êxtase
místico, como é o caso da maioria das religiões orientais, que exigem, para a
iluminação e o êxtase, uma educação especial do intelecto e da vontade dos
adeptos.
Freqüentemente, profetas e
videntes entram em transe para receber a revelação, mas a recebem não porque
tenham sido educados para isso e sim porque a divindade os escolheu para
manifestar-se. O transe dos profetas e dos adivinhos difere do êxtase místico
dos iluminados, porque, nos primeiros, o indivíduo tem acesso a um conhecimento
que pode compreender (mesmo com grande dificuldade) e por isso pode
transmiti-lo aos outros, enquanto nos segundos, não há conhecimento, não há
atividade intelectual que depois seja transmissível a outros, mas há mergulho e
fusão do indivíduo na divindade, numa experiência intraduzível e
intransmissível.
As religiões reveladas –
diferentes, portanto, das religiões extáticas – realizam a revelação de duas
maneiras: numa delas, como é o caso da judaica e da cristã, aquele que recebe a
revelação deve escrevê-la, para que
integre os textos da história sagrada e seja transmissível; na outra, como é o
caso da grega, da romana, das africanas, das indígenas, o vidente é levado
perante os deuses e vê a totalidade do tempo e dos acontecimentos, devendo,
após a visão, dizê-la, para
integrá-la à memória religiosa oral. Nos dois casos, porém, para que fique
indiscutível a origem divina da revelação, a exposição escrita ou oral só pode
ser feita por parábolas, metáforas, imagens e histórias, cujo sentido precisará
ser decifrado pelos leitores ou ouvintes. Deus, profetas e videntes falam por
meio de enigmas. Dessa maneira, o
caráter transcendente e misterioso da lei divina é preservado.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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