Culto, inculto: cultura
“Pedro é muito culto, conhece
várias línguas, entende de arte e de literatura.”
“Imagine! É claro que o Luís não
pode ocupar o cargo que pleiteia. Não tem cultura nenhuma. É semi-analfabeto!”
“Não creio que a cultura
francesa ou alemã sejam superiores à brasileira. Você acha que há alguma coisa
superior a nossa música popular?”
“Ouvi uma conferência que
criticava a cultura de massa, mas me pareceu que a conferencista defendia a
cultura de elite. Por isso, não concordei inteiramente com ela.”
“O livro de Silva sobre a
cultura dos guaranis é bem interessante. Aprendi que o modo como entendem a
religião e a guerra é muito diferente do nosso.”
Essas frases e muitas outras que
fazem parte do nosso dia-a-dia indicam que empregamos a palavra cultura (ou seus derivados, como culto,
inculto) em sentidos muito diferentes e, por vezes, contraditórios.
Na primeira e na segunda frase
que mencionamos acima, cultura é identificada com a posse de certos conhecimentos
(línguas, arte, literatura, ser alfabetizado). Nelas, fala-se em ter e não ter cultura, ser ou não ser culto. A posse de cultura é
vista como algo positivo, enquanto “ser inculto” é considerado algo negativo. A
segunda frase deixa entrever que “ter cultura” habilita alguém a ocupar algum
posto ou cargo, pois “não ter cultura” significa não estar preparado para uma
certa posição ou função. Nessas duas primeiras frases, a palavra cultura sugere também prestígio e
respeito, como se “ter cultura” ou “ser culto” fosse o mesmo que “ser
importante”, “ser superior”.
Ora, quando passamos à terceira
frase, a cultura já não parece ser uma propriedade de um indivíduo, mas uma
qualidade de uma coletividade – franceses, alemães, brasileiros. Também é
interessante observar que a coletividade aparece como um adjetivo qualificativo
para distinguir tipos de Cultura: a francesa, a alemã, a brasileira. Nessa
frase, a Cultura surge como algo que existe em si e por si mesma e que pode ser
comparada (Cultura superior, Cultura inferior).
Além disso, a Cultura aparece
representada por uma atividade artística, a música popular. Isso permite
estabelecer duas relações diferentes com as primeiras frases: 1. De fato, a
terceira frase, como a primeira, identifica Cultura e artes (entender de arte e
literatura, na primeira frase; a música popular brasileira, na terceira); 2. No
entanto, algo curioso acontece quando passamos das duas primeiras frases à
terceira. Com efeito, nas duas primeiras, “culto” e “inculto” surgiam como diferenças
sociais. Num país como o nosso,
dizer que alguém é inculto porque é semi-analfabeto deixa transparecer que
Cultura é algo que pertence a certas camadas ou classes sociais socialmente
privilegiadas, enquanto a incultura está do lado dos não-privilegiados
socialmente, portanto, do lado do povo e do popular. Entretanto, a terceira
frase afirma que a cultura brasileira não é inferior à francesa ou à alemã por
causa de nossa música popular. Não
estaríamos diante de uma contradição? Como poderia haver cultura popular (a
música), se o popular é inculto?
Já a quarta frase (a que se
refere à conferência sobre cultura de massa) introduz um novo significado para
a palavra cultura. Nela não se trata
mais de pessoas cultas ou incultas, nem de uma coletividade que possui uma
atividade cultural que possa ser comparada à de outras. Agora, estamos diante
da idéia de que numa mesma
coletividade ou numa mesma sociedade
pode haver dois tipos de Cultura: a de massa e a de elite. A frase não nos diz
o que é a Cultura. (Seria posse de conhecimentos? Ou seria atividade
artística?) Entretanto, a frase nos informa sobre uma oposição entre formas de
cultura, dependendo de sua origem e de sua destinação, pois “cultura de massa”
tanto pode significar “originada na massa” quanto “destinada à massa”, e o
mesmo pode ser dito da “cultura de elite” (originada na elite ou destinada à
elite).
Finalmente, a última frase que
mencionamos como exemplo apresenta um sentido totalmente diverso dos anteriores
no que toca à palavra cultura.
Fala-se, agora, na cultura dos guaranis
e esta aparece em duas manifestações: a guerra e a religião (que, portanto,
nada tem a ver com a posse de conhecimentos, atividade artística, massa ou
elite). Nessa última frase, a cultura aparece como algo dos guaranis – e como alguma coisa que não se limita ao campo dos
conhecimentos e das artes, pois se refere à relação dos guaranis com o sagrado (a religião) e com o conflito e a morte (a guerra).
Vemos, assim, que passar da
naturalização dos seres humanos à Cultura não resolve nossas dificuldades de
compreensão dos humanos, uma vez que, agora, precisamos perguntar: Como é
possível a palavra cultura possuir
tantos sentidos, alguns deles contraditórios com outros?
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
0 Response to "Culto, inculto: cultura"
Postar um comentário