Cultura e antropologia
Diferentemente de Hegel e Marx, que tomam a Cultura pela perspectiva
histórica ou pela relação dos humanos com o tempo, a antropologia considera a
Cultura por um outro prisma.
O antropólogo procura, antes de tudo, determinar em que momento e de que
maneira os humanos se afirmam como diferentes da Natureza fazendo o mundo
cultural surgir. Tradicionalmente, dizia-se que os humanos diferem da Natureza
graças à linguagem e à ação por liberdade. O antropólogo, sem negar essa
afirmação, procura algo mais profundo do que isso como início das culturas.
Assim, para muitos antropólogos, a diferença homem-Natureza surge quando os
humanos decretam uma lei que não poderá ser transgredida sem levar o culpado à
morte, exigida pela comunidade: a lei da proibição do incesto, desconhecida
pelos animais. Para muitos antropólogos, a diferença homem-Natureza também é
estabelecida quando os humanos definem uma lei que, se transgredida, causa a
ruína da comunidade e do indivíduo: a lei que separa o cru e o cozido,
desconhecida dos animais.
Não vamos aqui entrar nos detalhes das discussões antropológicas. O
importante, para nós, é perceber que os antropólogos buscam algo que demarque o
momento da separação homem-Natureza como instante de surgimento da Cultura.
Esse algo é uma regra ou norma humana que opera como lei universal, isto é, válida para todos os homens e para toda a
comunidade.
A lei humana é um imperativo social que organiza toda a vida dos indivíduos
e da comunidade, determinando o modo como são criados os costumes, como são
transmitidos de geração em geração, como fundam as instituições sociais
(religião, família, formas do trabalho, guerra e paz, distribuição das tarefas,
formas do poder, etc.). A lei não é uma simples proibição para certas coisas e
obrigação para outras, mas é a afirmação de que os humanos são capazes de criar
uma ordem de existência que não é simplesmente natural (física, biológica).
Esta ordem é a ordem simbólica.
Vimos que um símbolo é alguma coisa que se apresenta no lugar de outra e
presentifica algo que está ausente. Quando dizemos que a Cultura é a invenção
de uma ordem simbólica, estamos dizendo que nela e por ela os humanos atribuem
à realidade significações novas por meio das quais são capazes de se relacionar
com o ausente: pela palavra, pelo trabalho, pela memória, pela diferenciação do
tempo (passado, presente, futuro), pela diferenciação do espaço (próximo,
distante, grande, pequeno, alto, baixo), pela diferenciação entre o visível e o
invisível (os deuses, o passado, o distante no espaço) e pela atribuição de
valores às coisas e aos homens (bom, mau, justo, injusto, verdadeiro, falso,
belo, feio, possível, impossível, necessário, contingente).
Comunicação (por palavras, gestos, sinais, escrita, monumentos), trabalho
(transformação da Natureza), relação com o tempo e o espaço enquanto valores,
diferenciação entre sagrado e profano, determinação de regras e normas para a
realização do desejo, percepção da morte e doação de sentido a ela, percepção
da diferença sexual e doação de sentido a ela, interdições e punição das
transgressões, determinação da origem e da forma do poder legítimo e ilegítimo,
criação de formas expressivas para a relação com o outro, com o sagrado e com o
tempo (dança, música, rituais, guerra, paz, pintura, escultura, construção da
habitação, culinária, tecelagem, vestuário, etc.) são as principais
manifestações do surgimento da Cultura.
Em termos antropológicos, podemos, então, definir a Cultura como tendo três
sentidos principais:
1. criação da ordem simbólica da lei,
isto é, de sistemas de interdições e obrigações, estabelecidos a partir da
atribuição de valores a coisas (boas, más, perigosas, sagradas, diabólicas), a
humanos e suas relações (diferença sexual e proibição do incesto, virgindade,
fertilidade, puro-impuro, virilidade; diferença etária e forma de tratamento
dos mais velhos e mais jovens; diferença de autoridade e formas de relação com
o poder, etc.) e aos acontecimentos (significado da guerra, da peste, da fome,
do nascimento e da morte, obrigação de enterrar os mortos, proibição de ver o
parto, etc.);
2. criação de uma ordem simbólica da linguagem, do trabalho, do espaço, do
tempo, do sagrado e do profano, do visível e do invisível. Os símbolos surgem
tanto para representar quanto para interpretar a realidade, dando-lhe sentido
pela presença do humano no mundo;
3. conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas quais
os humanos se relacionam entre si e com a Natureza e dela se distinguem, agindo
sobre ela ou através dela, modificando-a. Este conjunto funda a organização
social, sua transformação e sua transmissão de geração a geração.
Em sentido antropológico, não falamos em Cultura, no singular, mas em culturas, no plural, pois a lei, os
valores, as crenças, as práticas e instituições variam de formação social para
formação social. Além disso, uma mesma sociedade, por ser temporal e histórica,
passa por transformações culturais amplas e, sob esse aspecto, antropologia e
História se completam, ainda que os ritmos temporais das várias sociedades não
sejam os mesmos, algumas mudando mais lentamente e outras mais rapidamente.
A esse sentido histórico-antropológico amplo, podemos acrescentar um outro,
restrito, ligado ao antigo sentido de cultivo do espírito: a Cultura como
criação de obras da sensibilidade e da imaginação – as obras de arte – e como
criação de obras da inteligência e da reflexão – as obras de pensamento. É esse
segundo sentido que leva o senso comum a identificar Cultura e escola (educação
formal), de um lado, e, de outro lado, a identificar Cultura e belas-artes
(música, pintura, escultura, dança, literatura, teatro, cinema, etc.).
Se, porém, reunirmos o sentido amplo e o sentido restrito, compreenderemos
que a Cultura é a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de
práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa,
intelectual e artística.
A religião, a culinária, o vestuário, o mobiliário, as formas de habitação,
os hábitos à mesa, as cerimônias, o modo de relacionar-se com os mais velhos e
os mais jovens, com os animais e com a terra, os utensílios, as técnicas, as
instituições sociais (como a família) e políticas (como o Estado), os costumes
diante da morte, a guerra, o trabalho, as ciências, a Filosofia, as artes, os
jogos, as festas, os tribunais, as relações amorosas, as diferenças sexuais e
étnicas, tudo isso constitui a Cultura como invenção da relação com o Outro.
Quem é o Outro? Antes de tudo, é a Natureza. A naturalidade é o Outro da
humanidade. A seguir, os deuses, maiores do que os humanos, superiores e
poderosos. Depois, os outros humanos, os diferentes de nós mesmos: os
estrangeiros, os antepassados e os descendentes, os inimigos e os amigos, os
homens para as mulheres, as mulheres para os homens, os mais velhos para os
jovens, os mais jovens para os velhos, etc. Em sociedades como a nossa,
divididas em classes sociais, o Outro é também a outra classe social, diferente
da nossa, de modo que a divisão social coloca o Outro no interior da mesma
sociedade e define relações de conflito, exploração, opressão, luta. Entre os
inúmeros resultados da existência da alteridade (o ser um Outro) no interior da
mesma sociedade, encontramos a divisão entre cultura de elite e cultura
popular, cultura erudita e cultura de massa.
Estamos, agora, em condições de perceber por que as frases de nosso
cotidiano sobre “cultos” e “incultos” indicam preconceitos e não conceitos. Que
preconceitos?
● Aquele que ignora que, em sentido antropológico e histórico, todos os humanos são cultos, pois são
todos seres culturais;
● Aquele que reduz a Cultura à escola e às belas-artes, sem se dar conta de
que aquela e estas são efeito da vida cultural e um dos aspectos da Cultura,
mas não toda a Cultura;
● Aquele que, partindo da Cultura como cultivo do espírito (obras de
pensamento e obras de arte), ignora que a separação entre “cultos” e
“incultos”, em sociedades divididas em classes sociais, é resultado de uma
organização social que confere a alguns o direito de produção e acesso às
obras, negando-o a outros, de tal maneira que, em lugar de um direito, tem-se,
de um lado, privilégio e, de outro, exclusão. Em outras palavras, usa-se a
Cultura como instrumento de discriminação social, econômica e política.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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