A vida após a morte
Toda religião explica não só a
origem da ordem do mundo natural, mas também do mundo humano. No caso dos
humanos, a religião precisa explicar por que são mortais. O mistério da morte é
sempre explicado como expiação de uma culpa original, cometida contra os
deuses. No princípio, os homens eram imortais e viviam na companhia dos deuses;
a seguir, uma transgressão imperdoável tem lugar e, com ela, a grande punição:
a mortalidade.
No entanto, a imortalidade não
está totalmente perdida. Algumas religiões afirmam que o corpo humano possui um
duplo, feito de outra matéria, que permanecerá após a morte, usando outros
seres para relacionar-se com os vivos. Certas religiões acreditam que o corpo é
habitado por uma entidade – espírito, alma, sombra imaterial, sopro -, que será
imortal se os decretos divinos e os rituais tiverem sido respeitados pelo fiel.
Por acreditarem firmemente numa outra vida – que pode ser imediata, após a
morte do corpo, ou pode exigir reencarnações purificadoras até alçar-se à
imortalidade -, as religiões possuem ritos funerários, encarregados de preparar
e garantir a entrada do morto na outra vida.
Em algumas religiões, como na
egípcia e na grega, a perfeita preservação do corpo morto, isto é, de sua imagem, era essencial para que fosse
reconhecido pelos deuses no reino dos mortos e recebesse a imortalidade. Por
isso, além dos ritos funerários, os cemitérios, na maioria das religiões e
particularmente nas africanas, indígenas e antigas ocidentais, eram lugares
sagrados, campos santos, nos quais somente alguns, e sob certas condições,
podiam penetrar.
Nas religiões do encantamento, como a grega, as
africanas e as indígenas, a morte é concebida de diversas maneiras, mas em
todas elas o morto fica encantado, isto é, torna-se algo mágico. Numa delas, o
morto deixa seu corpo para entrar num outro e permanecer no mundo, sob formas
variadas; ou deixa seu corpo e seu espírito permanecer no mundo, agitando os
ventos, as águas, o fogo, ensinando canto aos pássaros, protegendo as crianças,
ensinando os mais velhos, escondendo e achando coisas. Na outra, o morto tem
sua imagem ou seu espírito levado ao mundo divino, ali desfrutando das delícias
de uma vida perenemente perfeita e bela; se, porém, suas faltas terrenas forem
tantas e tais que não pôde ser perdoado, sua imagem ou espírito vagará
eternamente pelas trevas, sem repouso e sem descanso. O mesmo lhe acontecerá se
os rituais fúnebres não puderem ser realizados ou se tiverem sido realizados
com falhas. Esse perambular pelas trevas não existe nas religiões de
reencarnação, porque, em lugar dessa punição, o espírito deverá ter tantas
vidas e sob tantas formas quantas necessárias à sua purificação, até que possa
participar da felicidade perene.
Nas religiões da salvação, como é o caso do judaísmo, do
cristianismo e do islamismo, a felicidade perene não é apenas individual, mas
também coletiva. São religiões em que a divindade promete perdoar a falta
originária, enviando um salvador, que, sacrificando-se pelos humanos,
garante-lhes a imortalidade e a reconciliação com Deus.
Como a falta ou queda originária
atingiu a todos os humanos, o perdão divino e a redenção decorrem de uma
decisão divina, que deverá atingir a todos os humanos, se acreditarem e respeitarem a lei divina escrita nos textos sagrados e se
guardarem a esperança na promessa de salvação que lhes foi feita por Deus.
Nesse tipo de religião, a obra de salvação é realizada por um enviado de Deus –
messias, em hebraico; cristo, em grego. As religiões da salvação são
messiânicas e coletivas. Um povo – povo de Deus – será salvo pela lei e pelo
enviado divino.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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