A Filosofia e as manifestações culturais
A Filosofia se interessa por
todas as manifestações culturais, pois, como escreveu o filósofo Montaigne,
“nada do que é humano me é estranho”.
Os principais campos filosóficos
relativos às manifestações culturais são: a filosofia das ciências (que vimos
na teoria do conhecimento), da religião, das artes, da existência ética e da
vida política. Além disso, a Filosofia ocupa-se também com a crítica das
ideologias que se originam na vida política, mas se estendem para todas as
manifestações da Cultura.
O sagrado
O sagrado é uma experiência da
presença de uma potência ou de uma força sobrenatural que habita algum ser –
planta, animal, humano, coisas, ventos, água, fogo. Essa potência é tanto um
poder que pertence própria e definitivamente a um determinado ser, quanto algo
que ele pode possuir e perder, não ter e adquirir. O sagrado é a experiência
simbólica da diferença entre os seres, da superioridade de alguns sobre outros,
do poderio de alguns sobre outros, superioridade e poder sentidos como
espantosos, misteriosos, desejados e temidos.
A sacralidade introduz uma ruptura
entre natural e sobrenatural, mesmo que os seres sagrados sejam naturais (como
a água, o fogo, o vulcão): é sobrenatural a força ou potência para realizar
aquilo que os humanos julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e
capacidades humanas. Assim, por exemplo, em quase todas as culturas, um
guerreiro, cuja força, destreza e invencibilidade são espantosas, é considerado
habitado por uma potência sagrada. Um animal feroz, astuto, veloz e invencível
também é assim considerado. Por sua forma e ação misteriosas, benévolas e
malévolas, o fogo é um dos principais entes sagrados. Em regiões desérticas, a
sacralização concentra-se nas águas, raras e necessárias.
O sagrado opera o encantamento do mundo, habitado por
forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente. Criam vínculos
de simpatia-atração e de antipatia-repulsão entre todos os seres, agem à
distância, enlaçam entes diferentes com laços secretos e eficazes.
Todas as culturas possuem
vocábulos para exprimir o sagrado como força sobrenatural que habita o mundo.
Assim, nas culturas da Polinésia e da Melanésia, a palavra que designa o
sagrado é mana (e suas variantes).
Nas culturas das tribos norte-americanas, fala-se em orenda (e suas variantes), referindo-se ao poder mágico possuído
por todas as coisas, dando-lhes vida, vontade e ação, força que se pode roubar
de outras coisas para si, que se pode perder quando roubada por outros seres,
que se pode impor a outros mais fracos.
Entre as culturas dos índios
sul-americanos, o sagrado é designado por palavras como tunpa e aigres. Nas
africanas, há centenas de termos, dependendo da língua e da relação mantida com
o sobrenatural, mas o termo fundamental, embora com variantes de pronúncia, é ntu, “força universal em que coincidem
aquilo que é e aquilo que existe”.
Na cultura hebraica, dois termos
designavam o sagrado: qados e herem, significando aqueles seres ou
coisas que são separados por Deus para seu culto, serviço, sacrifício, punição,
não podendo ser tocados pelo homem. Assim a Arca da Aliança, onde estavam
guardados os textos sagrados, era qados
e, portanto, intocável. Também os prisioneiros de uma guerra santa pertenciam a
Deus, sendo declarados herem. Na
cultura grega, agnos (puro) e agios (intocável), e na romana, sacer (dedicado à divindade) e sanctus (inviolável) constituem a esfera
do sagrado.
Sagrado é, pois, a qualidade
excepcional – boa ou má, benéfica ou maléfica, protetora ou ameaçadora – que um
ser possui e que o separa e distingue de todos os outros, embora, em muitas culturas,
todos os seres possuam algo sagrado, pelo que se diferenciam uns dos outros.
O sagrado pode suscitar devoção
e amor, repulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o respeito feito
de temor. Nasce, aqui, o sentimento religioso e a experiência da religião.
A religião pressupõe que, além
do sentimento da diferença entre natural e sobrenatural, haja o sentimento da
separação entre os humanos e o sagrado, mesmo que este habite os humanos e a
Natureza.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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