Novamente a História
Os estudiosos, partindo da filosofia da história e da antropologia,
distinguem dois grandes tipos de cultura: a das comunidades e a das sociedades.
Uma comunidade é um grupo ou uma coletividade onde as pessoas se conhecem,
tratam-se pelo primeiro nome, possuem contatos cotidianos cara a cara,
compartilham os mesmos sentimentos e idéias e possuem um destino comum.
Uma sociedade é uma coletividade internamente dividida em grupos e classes
sociais e na qual há indivíduos isolados uns dos outros. Seus membros não se
conhecem pessoalmente nem intimamente. Cada classe social é antagônica à outra
ou às outras, com valores e sentimentos diferentes e mesmo opostos. As relações
não são pessoais, mas sociais, isto é, os indivíduos, grupos e classes se
relacionam pela mediação de instituições como a família, a escola, a fábrica, o
comércio, os partidos políticos e o Estado.
Os agrupamentos indígenas, por exemplo, são comunidades, portanto,
internamente unos e indivisos. Em contrapartida, nós vivemos em sociedade e não
em comunidade.
O tempo, nas comunidades, possui um ritmo lento, as transformações são
raras e, em geral, causadas por um acontecimento externo que as afeta (por
exemplo, a conquista e colonização branca imposta aos índios). Por isso, se diz
que a comunidade está na História ou
no tempo, mas não é histórica.
Ao contrário, a sociedade é
histórica, ou seja, para ela as transformações são constantes e velozes,
causadas pelas lutas e pelas divisões internas. Diz-se, então, que uma
sociedade é histórica quando, para ela, ter uma história e estar no tempo são
um problema, uma indagação que ela não cessa de responder. Por quê?
Uma comunidade baseia-se em mitos fundadores ou narrativas sobre sua origem
e sobre o que nela aconteceu, acontece e acontecerá. Os mitos capturam o tempo
e oferecem explicações satisfatórias para todos sobre o presente, o passado e o
futuro.
Numa sociedade, porém, cada classe social procura explicar a origem da
sociedade e de suas mudanças e, conseqüentemente, há diferentes explicações
para o surgimento, a forma e a transformação sociais. Os grupos dominantes
narram a história da sociedade de modo diferente e oposto à narrativa dos
grupos dominados.
A classe que domina e a que é dominada possuem, portanto, concepções
diferentes e contrárias sobre as causas dos acontecimentos, não havendo uma
explicação única e idêntica para todos sobre a origem da sociedade e suas
transformações. Eis, por que, para uma sociedade, ser histórica é um problema e
não uma solução. Em outras palavras, enquanto o mito unifica o tempo
comunitário, as histórias sociais multiplicam as interpretações sobre as causas
e os efeitos temporais.
Finalmente, uma comunidade cria a mesma
Cultura para todos os seus membros, mas numa sociedade isso não é possível, e
as diferentes classes sociais produzem culturas diferentes e mesmo antagônicas.
Por esse motivo é que as sociedades conhecem um fenômeno inexistente nas
comunidades: a ideologia. Esta é
resultado da imposição da cultura dos dominantes à sociedade inteira, como se
todas as classes e todos os grupos sociais pudessem e devessem ter a mesma
Cultura, embora vivendo em condições sociais diferentes.
A ideologia é uma das maneiras pelas quais as sociedades históricas buscam
oferecer a imagem de uma única Cultura e de uma única história, ocultando a
divisão social interna.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
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