Concepções de homem
A questão antropológica — o que é
o homem? — é a primeira que se coloca em qualquer situação vivida pelo homem.
Quando dizemos que se trata de uma questão primeira, não nos referimos à
prioridade histórica, pois nem sempre esse questionamento ocorre de fato. Por
exemplo, nas sociedades tradicionalistas, como a China e o Egito da Antiguidade,
ou ainda nas tribos primitivas, a indagação sobre o que é o homem não chega a
ser problemática, já que a tradição define os modelos de ideias e condutas que
serão transmitidos pelos depositários do saber, tais como o sacerdote, o
escriba e o mandarim.
Consideramos a prioridade da questão
antropológica no sentido filosófico de princípio, fundamento, ou seja, ao examinar
a fundo qualquer teoria ou atividade humana, sempre podemos descobrir a ideia
de homem a ela subjacente. Assim, na longa caminhada da humanidade, o homem fez
de si próprio as mais diversas representações, dependendo das situações e
dificuldades enfrentadas na luta pela sobrevivência e na tentativa de explicar
o mundo que o cerca. Mesmo que não esteja claramente explícito, há um conceito
de homem subjacente em cada comportamento. Certamente, o conceito do que é ser
homem varia em cada cultura, conforme seja considerado o cidadão da pólis grega,
ou o nobre medieval, ou o índio, ou o indivíduo das megalópoles modernas.
Mas, quando a cultura sofre
crises, como a ruptura de antigas certezas, surge o questionamento, e o homem
busca novas representações de si mesmo. Foi o que aconteceu, por exemplo, na
Grécia, onde o desenvolvimento da reflexão filosófica se deu após uma série de
transformações as mais diversas, tais como a formação das cidades e o desenvolvimento
do comércio. A busca, resultante da incerteza, se expressa bem nas máximas de
Sócrates "Só sei que nada sei" e "Conhece-te a ti mesmo",
que, em última análise, representam o projeto da razão nascente de estabelecer
critérios não-religiosos para a compreensão do homem.
As transformações das técnicas e
das ciências também contribuem para modificar as representações que o homem faz
de si mesmo. Basta citar o que significou o advento da escrita, da imprensa ou,
no nosso século, o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. Não
constitui exagero, por exemplo, refletir sobre o impacto causado pela teoria
heliocêntrica de Copérnico, que, no século XVI, rompeu com a crença de que a
Terra ocupava o lugar privilegiado de centro do Universo.
Assim como podemos compreender as
diversas concepções de homem a partir das mudanças ocorridas nas formas do
existir humano, também é importante entender como, por sua vez, as concepções
de homem influenciam outras teorias. A ação política, a ação pedagógica, a ação
moral, entre outras, assumem características diferentes conforme tenham por
pressuposto uma ou outra concepção de homem.
Por exemplo, se partirmos da concepção
de que as paixões são distúrbios, perturbações da alma, exigiremos normas de
comportamento diferentes daquelas estabelecidas a partir de teorias que
concebem as paixões como forças vitais a serviço da humanização. Por isso são
tão opostas as concepções estoico-cristãs de ética — que se identificam com o
primeiro exemplo — e a filosofia de Nietzsche, que justamente critica essa forma
de pensar e a prática dela decorrente.
Existe uma natureza humana
universal?
É possível admitir que existe uma
natureza humana universal, idêntica na sua essência em todos os tempos e lugares,
explicando-se as diferenças como simples acidentes ou desvios a serem
corrigidos?
Se respondemos pela afirmativa —
e é isso o que ocorre em grande parte das teorias filosóficas desde a Antiguidade
até nossos dias — estamos diante da concepção metafísica da natureza humana.
Fonte:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e
MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. São Paulo, Moderna, 2000
(edição digital).
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