A religião como narrativa da origem
A religião não transmuta apenas
o espaço. Também qualifica o tempo, dando-lhe a marca do sagrado.
O tempo sagrado é uma narrativa.
Narra a origem dos deuses e, pela ação das divindades, a origem das coisas, das
plantas, dos animais e dos seres humanos. Por isso, a narrativa religiosa
sempre começa com alguma expressão do tipo: “no princípio”, “no começo”, “quando
o deus x estava na Terra”, “quando a
deusa y viu pela primeira vez”, etc.
A narrativa sagrada é a história sagrada, que os gregos
chamavam de mito. Este não é uma
fabulação ilusória, uma fantasia sem consciência, mas a maneira pela qual uma
sociedade narra para si mesma seu começo e o de toda a realidade, inclusive o
começo ou nascimento dos próprios deuses. Só tardiamente, quando surgiu a
Filosofia e, depois dela, a teologia, a razão exigirá que os deuses não sejam
apenas imortais, mas também eternos, sem começo e sem fim. Antes, porém, da
Filosofia e da teologia, a religião narrava teogonias (do grego: theos,
deus; gonia, geração) isto é, a
geração ou o nascimento dos deuses, semideuses e heróis.
O contraste entre dia e noite –
luz e treva -, entre as estações do ano – frio, quente, ameno, com flores, com
frutos, com chuvas, com secas -, entre o nascimento e a desaparição – vida e
morte -, entre tipos de animais – terrestres, aquáticos, voadores, ferozes e
dóceis -, entre tipos de humanos – brancos, negros, amarelos, vermelhos, altos,
baixos, peludos, glabros -, as técnicas obtidas pelo controle sobre alguma
força natural – fogo, água, ventos, pedras, areia, ervas – evidenciam um mundo
ordenado e regular, no qual os humanos nascem, vivem e morrem. A história
sagrada ou mito narra como e por que a ordem do mundo existe e como e por que
foi doada aos humanos pelos deuses. Assim, além de ser uma teogonia, a história
sagrada é uma cosmogonia (do grego: cosmos, mundo; gonia, geração): narra o nascimento, a finalidade e o perecimento
de todos os seres sob a ação dos deuses.
Assim como há dois espaços, há
dois tempos: o anterior à criação ou gênese dos deuses e das coisas – tempo do
vazio e do caos – e o tempo originário da gênese de tudo quanto existe – tempo
do pleno e da ordem. Nesse tempo sagrado da ordem, novamente uma divisão: o
tempo primitivo, inteiramente divino, quando tudo foi criado, e o tempo do
agora, profano, em que vivem os seres naturais, incluindo os homens.
Embora a narrativa sagrada seja
uma explicação para a ordem natural e humana, ela não se dirige ao intelecto
dos crentes (não é Filosofia nem ciência), mas se endereça ao coração deles.
Desperta emoções e sentimentos – admiração, espanto, medo, esperança, amor,
ódio.
Porque se dirige às paixões do
crente, a religião lhe pede uma só coisa: fé,
ou seja, a confiança, adesão plena ao que lhe é manifestado como ação da
divindade. A atitude fundamental da fé é a piedade:
respeito pelos deuses e pelos antepassados. A religião é crença, não é saber. A
tentativa para transformar a religião em saber racional chama-se teologia.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
1 de dezembro de 2017 às 06:20
Obrigado amigo, em grande parte me ajudou muito esse seu artigo