"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Conciliação entre Filosofia e religião


Vários filósofos procuraram conciliar Filosofia e religião. Das tentativas feitas, mencionaremos três, cronologicamente mais próximas de nós: a de Kant, a de Hegel e a da fenomenologia.
A crítica kantiana à pretensão da metafísica de ser ciência dirige-se à Filosofia, quando esta assume o conteúdo de uma teologia racional (demonstração racional da essência e existência de Deus), uma psicologia racional (demonstração da imortalidade da alma) e uma cosmologia racional (demonstração da origem e essência do mundo ou Natureza). A distinção entre fenômeno e nôumeno permite ao filósofo limitar o campo do conhecimento teórico ao primeiro e impedir a pretensão de teorizar sobre o segundo.
A metafísica não é conhecimento da essência em si de Deus, alma e mundo; estes são nôumenos (realidade em si) inacessíveis ao nosso entendimento. A religião, por sua vez, não é teologia, não é teoria sobre Deus, alma e mundo, mas resposta a uma pergunta da razão que esta não pode responder teoricamente: “O que podemos esperar?”.  

Qual o papel da religião? Oferecer conceitos e princípios para a ação moral e fortalecer a esperança num destino superior da alma humana. Sem Deus e a alma livre não haveria a humanidade, mas apenas a animalidade natural; sem a imortalidade, o dever tornar-se-ia banal.
Hegel segue numa direção diversa da de Kant. Para ele, a realidade não é senão a história do Espírito em busca da identidade consigo mesmo. Deus não é uma substância, cuja essência foi fixada antes e fora do tempo, mas é o sujeito espiritual, que se efetua como sujeito temporal, cuja ação é ele mesmo manifestando-se para si mesmo. A mais baixa manifestação do Espírito é a Natureza; a mais alta, a Cultura.
Na Cultura, o Espírito se realiza como Arte, Religião e Filosofia, numa seqüência que é o aperfeiçoamento rumo ao término do tempo. Isso significa que Deus se manifesta, primeiro, como Arte nas artes; depois, como Religião nas religiões; depois disso, como Estado nos estados; e, finalmente, como Filosofia nas filosofias. Em lugar de opor religião e Filosofia, Hegel faz da primeira uma etapa preparatória da segunda.
A fenomenologia, como vimos, descreve essências constituídas pela intencionalidade da consciência, que é doadora de sentido à realidade. A consciência constitui as significações, assumindo atitudes diferentes, cada qual com seu campo específico, sua estrutura e finalidades próprias. Assim como há a atitude natural (a crença realista ingênua na existência das coisas) e a atitude filosófica (a reflexão), há também a atitude religiosa, como uma das possibilidades da vida da consciência. Quando esta se relaciona com o mundo através das categorias e das práticas ligadas ao sagrado, constitui a atitude religiosa.
Assim, a consciência pode relacionar-se com o mundo de maneiras variadas – senso comum, ciência, filosofia, artes, religião -, de sorte que não há oposição nem exclusão entre elas, mas diferença. Isso significa que a oposição só surgirá quando a consciência, estando numa atitude, pretender relacionar-se com o mundo utilizando significações e práticas de uma outra atitude. Foi isso que engendrou a oposição e o conflito entre Filosofia e religião, pois, sendo atitudes diferentes da consciência, cada uma delas não pode usurpar os modos de conhecer e agir, nem as significações da outra.


Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000.

1 Response to "Conciliação entre Filosofia e religião"

  1. Ensinar História says:
    26 de julho de 2016 às 15:00

    Olá equipe do blog filosofando e historiando, parabéns pelo conteúdos.

    Abraços,

    Andréia