Natureza e Cultura
No pensamento ocidental,
Natureza possui vários sentidos:
● princípio de vida ou princípio ativo que anima e movimenta os seres.
Nesse sentido, fala-se em “deixar agir a Natureza” ou “seguir a Natureza” para
significar que se trata de uma força espontânea, capaz de gerar e de cuidar de
todos os seres por ela criados e movidos. A Natureza é a substância (matéria e forma) dos seres;
● essência própria de um ser ou aquilo que um ser é necessária e
universalmente. Neste sentido, a natureza de alguma coisa é o conjunto de
qualidades, propriedades e atributos que a definem, é seu caráter ou sua índole
inata, espontânea. Aqui, Natureza se opõe às idéias de acidental (o que pode
ser ou deixar de ser) e de adquirido por costume ou pela relação com as
circunstâncias;
● organização universal e necessária dos seres segundo uma ordem regida por
leis naturais. Neste sentido, a Natureza se caracteriza pelo ordenamento dos
seres, pela regularidade dos fenômenos ou dos fatos, pela freqüência,
constância e repetição de encadeamentos fixos entre as coisas, isto é, de
relações de causalidade entre elas. Em outros termos, a Natureza é a ordem e a
conexão universal e necessária entre as coisas, expressas em leis naturais;
● tudo o que existe no Universo sem a intervenção da vontade e da ação
humanas. Neste sentido, Natureza opõe-se a artificial, artefato, artifício,
técnico e tecnológico. Natural é tudo quanto se produz e se desenvolve sem
qualquer interferência humana;
● conjunto de tudo quanto existe e é percebido pelos humanos como o meio e
o ambiente no qual vivem. A Natureza, aqui, tanto significa o conjunto das
condições físicas onde vivemos, quanto aquelas coisas que contemplamos com
emoção (a paisagem, o mar, o céu, as estrelas, terremotos, eclipses, tufões,
erupções vulcânicas, etc.). A Natureza é o mundo visível como meio ambiente e
como aquilo que existe fora de nós, mesmo que provoque idéias e sentimentos em
nós;
● para as ciências contemporâneas, a Natureza não é apenas a realidade
externa, dada e observada, percebida diretamente por nós, mas é um objeto de
conhecimento construído pelas operações científicas, um campo objetivo produzido pela atividade do conhecimento, com o
auxílio de instrumentos tecnológicos. Neste sentido, a Natureza,
paradoxalmente, torna-se algo que passa a depender da interferência ou da
intervenção humana, pois o objeto natural é construído cientificamente.
Esse último sentido da idéia de Natureza indica uma diferença entre a
concepção comum e a científica, pois a primeira considera a Natureza nos cinco
primeiros significados que apontamos, enquanto a segunda considera a Natureza
como uma noção ou um conceito produzido pelos próprios homens e, nesse caso,
como artifício, artefato, construção humana. Em outras palavras, a própria
idéia de Natureza tornou-se um objeto cultural.
Mas, afinal, o que é a Cultura?
Dois são os significados iniciais da noção de Cultura:
1. vinda do verbo latino colere,
que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar, Cultura significava o
cuidado do homem com a Natureza. Donde: agricultura. Significava, também,
cuidado dos homens com os deuses. Donde: culto. Significava ainda, o cuidado
com a alma e o corpo das crianças, com sua educação e formação. Donde:
puericultura (em latim, puer
significa menino; puera, menina). A
Cultura era o cultivo ou a educação do espírito das crianças para tornarem-se
membros excelentes ou virtuosos da sociedade pelo aperfeiçoamento e refinamento
das qualidades naturais (caráter, índole, temperamento);
2. a partir do século XVIII, Cultura passa a significar os resultados daquela formação ou
educação dos seres humanos, resultados expressos em obras, feitos, ações e
instituições: as artes, as ciências, a Filosofia, os ofícios, a religião e o
Estado. Torna-se sinônimo de civilização,
pois os pensadores julgavam que os resultados da formação-educação aparecem com
maior clareza e nitidez na vida social e política ou na vida civil (a palavra civil vem do latim: cives, cidadão; civitas,
a cidade-Estado).
No primeiro sentido, a Cultura é o aprimoramento da natureza humana pela
educação em sentido amplo, isto é, como formação das crianças não só pela
alfabetização, mas também pela iniciação à vida da coletividade por meio do
aprendizado da música, dança, ginástica, gramática, poesia, retórica, história,
Filosofia, etc. A pessoa culta era a pessoa moralmente virtuosa, politicamente
consciente e participante, intelectualmente desenvolvida pelo conhecimento das
ciências, das artes e da Filosofia. É este sentido que leva muitos, ainda hoje,
a falar em “cultos” e “incultos”.
Podemos observar que neste primeiro sentido Cultura e Natureza não se
opõem. Os humanos são considerados seres naturais, embora diferentes dos
animais e das plantas. Sua natureza, porém, não pode ser deixada por conta
própria, porque tenderá a ser agressiva, destrutiva, ignorante, precisando por
isso ser educada, formada, cultivada de acordo com os ideais de sua sociedade.
A Cultura é uma segunda natureza,
que a educação e os costumes acrescentam à primeira
natureza, isto é, uma natureza adquirida,
que melhora, aperfeiçoa e desenvolve a natureza inata de cada um.
No segundo sentido, isto é, naquele formulado a partir do século XVIII, tem
início a separação e, posteriormente, a oposição entre Natureza e Cultura. Os
pensadores consideram, sobretudo a partir de Kant, que há entre o homem e a
Natureza uma diferença essencial: esta opera mecanicamente de acordo com leis
necessárias de causa e efeito, mas aquele é dotado de liberdade e razão, agindo
por escolha, de acordo com valores e fins. A Natureza é o reino da necessidade
causal, do determinismo cego. A humanidade ou Cultura é o reino da finalidade
livre, das escolhas racionais, dos valores, da distinção entre bem e mal,
verdadeiro e falso, justo e injusto, sagrado e profano, belo e feio.
À medida que este segundo sentido foi prevalecendo, Cultura passou a
significar, em primeiro lugar, as obras humanas que se exprimem numa
civilização, mas, em segundo lugar, passou a significar a relação que os
humanos, socialmente organizados, estabelecem com o tempo e com o espaço, com
os outros humanos e com a Natureza, relações que se transformam e variam.
Agora, Cultura torna-se sinônimo de História.
A Natureza é o reino da repetição; a
Cultura, o da transformação racional;
portanto, é a relação dos humanos com o tempo e no tempo.
Fonte: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ed.
Ática, 2000.
21 de março de 2020 às 17:30
Me ajudou! Obrigada.