"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

Idade Média (Parte 03/07)


AGOSTINHO - (Páginas 192-197.)

Sofia começou a sentir os olhos pesados. Afinal, ela não tinha dormido mais do que duas horas. Pareceu-lhe estar sonhando quando viu a figura daquele monge singular descendo do púlpito da igreja de Santa Maria.
Alberto dirigiu-se até o banco do altar. Primeiro olhou para o altar onde havia aquele crucifixo antigo. Depois virou-se para a direção de Sofia, foi a passos lentos até ela e sentou-se ao seu lado no banco.
Era estranho tê-lo assim tão perto. Sob o capuz do hábito, Sofia pôde ver dois olhos castanhos. Eram os olhos de um homem de meia-idade, que usava cavanhaque.
“Quem é você?”, pensou ela. “Por que você entrou assim na minha vida?”
— Ainda vamos nos conhecer melhor — disse ele, como se tivesse lido os pensamentos dela.
Enquanto permaneceram ali sentados e a luz que entrava pelos vitrais coloridos ia ficando cada vez mais clara, Alberto Knox começou a falar sobre a filosofia da Idade Média.
— Para os filósofos da Idade Média, o fato de o cristianismo significar a verdade era um dado praticamente irrefutável. A questão era saber se tínhamos que simplesmente acreditar na revelação cristã, ou se também podíamos nos aproximar das verdades cristãs com a ajuda de nossa razão. Qual era a relação entre os filósofos gregos e as doutrinas da Bíblia? Havia uma contradição entre a Bíblia e a razão, ou será que a fé e o conhecimento podiam conviver em harmonia? Quase toda a filosofia da Idade Média gira em torno dessas questões.
Sofia concordou com a cabeça, impaciente. É que ela já tinha estudado essa história de crença e conhecimento em suas aulas de religião.
— Veremos como esta problemática é tratada pelos dois maiores filósofos da Idade Média. Podemos começar com santo Agostinho, que viveu de 354 a 430. A vida deste homem resume sozinha a transição entre o final da Antigüidade e os primórdios da Idade Média. Santo Agostinho nasceu em Tagasta, no Norte da África, mas já aos dezesseis anos foi para Cartago para estudar. Mais tarde ele visitou Roma e Milão e passou os últimos anos de sua vida como bispo de Hipona, trinta ou quarenta quilômetros a oeste de Cartago. Mas ele não foi cristão durante toda a sua vida. Antes de se converter, santo Agostinho pesquisou várias tendências filosóficas e religiosas.
— Você pode me dar um exemplo?
— Durante algum tempo ele foi maniqueu. Os maniqueus formavam uma seita típica do final da Antigüidade. Eles professavam uma doutrina da salvação meio religiosa, meio filosófica. Dividiam o mundo em bem e mal, luzes e trevas, espírito e matéria. Graças a seu espírito, o homem podia transcender a matéria e criar com isto as bases para a redenção de sua alma. Mas a divisão estanque entre bem e mal não deixava Agostinho sossegado. O jovem Agostinho ocupou-se intensamente daquilo que costumamos chamar de “o problema do mal”. Referimo-nos com isto à questão de saber a origem do mal. Durante algum tempo ele foi influenciado pela filosofia estóica, e os estóicos contestavam uma divisão rígida entre bem e mal. Mas foi sobretudo a segunda importante corrente filosófica do final da Antigüidade – o neoplatonismo – que mais influenciou santo Agostinho. Aqui ele tomou contato com a idéia de que toda a existência humana é de natureza divina.
— E então ele se transformou num bispo neoplatônico?
— Sim, talvez possamos colocar a coisa dessa forma. Em primeiro lugar, ele se converteu ao cristianismo, mas o cristianismo de santo Agostinho é em grande parte influenciado pelo pensamento de Platão. E como você pode ver, Sofia, no momento em que entramos na Idade Média cristã vemos que não se tratou de uma ruptura assim tão dramática com a filosofia grega. Muito da filosofia grega foi levado para a nova era pelas mãos de padres da igreja, como santo Agostinho.
— Você está querendo dizer que santo Agostinho era cinqüenta por cento cristão e cinqüenta por cento neoplatônico?
— Bem, ele próprio se considerava cem por cento cristão. Mas ele não via muitas contradições entre o cristianismo e a filosofia de Platão. Para ele, os paralelos entre a filosofia de Platão e a doutrina cristã eram tão evidentes que ele se perguntava se Platão não teria conhecido pelo menos uma parte do Antigo Testamento. É claro que isto é muito pouco provável. Seria mais acertado dizer que santo Agostinho “cristianizou” Platão.
— Pelo menos ele não desprezou tudo o que tinha a ver com filosofia, embora acreditasse no cristianismo.
— Mas ele mostrou que há limites para a razão, quando se trata de questões religiosas. O cristianismo também é um mistério divino, a que só podemos chegar através da fé. Se acreditarmos no cristianismo, porém, Deus irá “iluminar” nossa alma e então receberemos d’Ele uma espécie de saber que está além do natural. Santo Agostinho experimentou nele próprio os limites até onde a filosofia podia chegar. Somente quando se converteu ao cristianismo é que sua alma conheceu a paz. “Inquieto é o nosso coração, até quando repousa em Ti”, escreveu ele.
— Não entendo muito bem como a teoria das idéias, de Platão, e o cristianismo podem ter alguma identificação — replicou Sofia. — O que acontece, por exemplo, com as idéias eternas?
— Santo Agostinho explicava que Deus havia criado o mundo a partir do nada, e este é um ensinamento da Bíblia. Os gregos, por sua vez, tendiam para a visão segundo a qual o mundo sempre tinha existido. Para Agostinho, antes de Deus ter criado o mundo, as “idéias” já existiam dentro da Sua cabeça. Ele atribuiu a Deus as idéias eternas e com isto salvou a concepção platônica das idéias eternas.
— Muito inteligente!

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