"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A Democracia em Questão (Parte 02/14)


Modernidade e Individualismo

A modernidade tem como um dos seus fundamentos, a criação do conceito e da própria experiência do individualismo. É na modernidade que, inusitadamente, o indivíduo começa a elaborar, de forma consciente, um projeto para a sua autonomia, fundamentado na razão e que passa a efetivar-se não apenas no plano das idéias, mas também das realizações concretas.

Não é possível compreender a política, o Estado e a idéia de cidadania moderna sem considerar o projeto burguês da autonomia do indivíduo.

A racionalidade nascida no final do século XVII, se estendeu pelos domínios da filosofia, da arte, das ciências, da tecnologia e da indústria, desenvolvendo um imaginário e uma realidade na qual indivíduo se apresenta como capaz, pelo direito natural, de constituir a humanidade por meio do trabalho. Esse trabalho foi vinculado pelos ideólogos burgueses à conquista da propriedade privada e está na base do capitalismo moderno.

É este o panorama da criação da idéia de liberdade individual moderna, sobre o qual se edifica a idéia liberal de democracia e cidadania.

Vejamos como o filósofo brasileiro Gerd Bornheim analisa a relação entre a modernidade e o individualismo:

Portanto, o individualismo, construído com uma lucidez inusitada, se configura como ponto de partida das modernas revoluções. Acontece que esse mesmo individualismo desencadearia também o drama maior da modernidade. Realmente a soberania do indivíduo começa a tropeçar de imediato com suas próprias fronteiras. A questão que logo se coloca está toda nesta pergunta: se a auto-afirmação do indivíduo se torna tão soberana quanto autônoma, cabe perguntar pelos limites dessa nova situação; até que ponto se faz de fato tolerável essa expansão do indivíduo, que até passa a equacionar a si próprio simplesmente em termos de universo: o homem – quer se garantir agora – reflete em seu próprio corpo as proporções do cosmo. Entrementes, ocorre, por aí, que se marginaliza esse outro problema não menos essencial: se há uma matemática proporção entre o cosmo e o indivíduo, qual seria a proporção entre esse mesmo cosmo e a sociedade que congrega indivíduos? Cabe dizer, pois, que o individualismo termina por desentender-se no tema maior de suas próprias limitações. Como consegue o indivíduo, finalmente alçado à sua própria excelência, fazer de si mesmo uma realidade social? E esta pergunta configura as bases que perpassam todas as crises sociais dos tempos modernos. (BORNHEIM, 2003. p.213)

A Concepção Liberal de Política

O liberalismo é uma corrente que tem sua aparição efetiva no cenário do pensamento político por volta do século XIX, ainda que existam traços das suas teses fundamentais antes desse período. O liberalismo é definido como um projeto que busca conceber e justificar o Estado de forma leiga (não religiosa), que defende as limitações dos poderes dos governos, visando a proteção dos direitos dos membros da sociedade. Outra característica forte do liberalismo, e para alguns autores a mais determinante, é que ele constitui “pura e simplesmente a expressão segundo a qual o poder do Estado deve ser sistematicamente limitado”. (PETTIT, 2003) De acordo com este último sentido, os liberais afirmam que a verdadeira liberdade depende da menor interferência possível do Estado e das leis. Essa concepção ficou conhecida como liberdade negativa, ou seja, só há liberdade na ausência de interferência.


Gerd Bornheim (1929-2002) - filósofo e professor de filosofia brasileiro, nasceu em Caxias do Sul. Publicou, dentre outros: Dialética – teoria e práxis; Sartre – metafísica e existencialismo; Introdução ao Filosofar; O sentido e a máscara; Filósofos pré-socráticos; Brecht – a estética do teatro; além dos ensaios: O sujeito e a norma; Crise da idéia de crise; Sobre o estatuto da razão; Da superação à necessidade: o desejo em Hegel e Marx; O bom selvagem como philosophe e a invenção do mundo sensível; As medidas da liberdade; Natureza do Estado moderno.

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