A Democracia em Questão (Parte 04/14)
Benjamin Constant (1776 -1830)
Benjamin Constant: Duas Concepções de Liberdade
O pensador e político franco-suíço, Benjamin Constant captou e demonstrou com perspicácia a essência da modernidade, no que se refere à política, às relações entre o indivíduo e seus interesses particulares e suas relações com a sociedade.
O desenvolvimento da subjetividade moderna representou avanços e conquistas importantes não vivenciados pelos gregos e romanos da Antigüidade Clássica, e isso Constant compreendeu muito bem, sobretudo quando buscou demonstrar que o sistema representativo garantia níveis de controle do povo com relação ao governo, sem com isso demandar excessivamente a sociedade, retirando dela a sua liberdade individual. Para Constant, “os povos antigos não podiam nem sentir a necessidade nem apreciar as vantagens desse sistema. A organização social desses povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente da que este sistema nos assegura”. (CONSTANT, De la liberte chez lês modernes. p. 495.)
Se gregos e romanos, por caminhos distintos inventaram a esfera pública e conseguiram torná-la em maior ou menor escala um bem participável, no âmbito da vida privada o despotismo continuou sendo a forma de poder determinante em ambas culturas. Preservadas as diferenças, é possível dizer que, tanto para os gregos como para os romanos, a liberdade correspondia à participação na vida pública e à vida no domínio privado, fosse doméstica ou relacionada às atividades econômicas, estava necessariamente subordinada à vida política. Em contrapartida, a marca da liberdade moderna se configura, segundo Constant, enquanto exercício de prerrogativas privadas.
Vamos apresentar as duas concepções clássicas de liberdade nas palavras de Benjamin Constant:
Liberdade dos antigos:
Consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo em que consistia nisso o que os antigos chamavam liberdade, eles admitiam, como compatível com ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios que vemos fazer parte da liberdade entre os modernos. Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância.
Liberdade dos modernos:
É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de influir sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários, seja por representações, petições, reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração. (CONSTANT, De la liberte chez lês modernes. p. 495.)
A Representação Política
Constant embora preocupado com a ameaça que representava o individualismo moderno, pretendia provar que a experiência política ateniense era inatingível e mesmo indesejável, em função da abolição do modelo escravagista e do desenvolvimento do capitalismo que de manda o envolvimento do homem moderno nas tarefas cotidianas da produção. Outro aspecto fundamental que afastaria o homem moderno do ideal grego de participação direta na esfera pública teria sido a descoberta da subjetividade e da crescente valorização dos interesses privados. Sem tempo e não tendo escolhido a participação na esfera pública como seu interesse principal, porém muito preocupado em garantir a não-interferência do Estado na esfera privada, o homem moderno, segundo Constant, teria no sistema parlamentar representativo uma solução para o seu dilema.
Subordinando a liberdade política à liberdade individual, Constant reduz a política a um instrumento externo à sociedade, cujo controle se exerceria através da representação política. Dessa maneira ele afirma poder evitar dois perigos. O primeiro referente à liberdade antiga, quando os cidadãos na tentativa de garantir a soberania da sociedade através da plena participação acabavam, segundo ele, por deixar de lado os direitos e garantias individuais. O segundo perigo diz respeito à liberdade moderna, na qual os indivíduos absorvidos pelo desejo da independência privada acabam por renunciar ao direito à participação no poder político.
Essa liberdade necessita de uma organização diferente da que poderia convir à liberdade antiga. Nesta, quanto mais tempo e forças o homem consagrava ao exercício de seus direitos políticos, mais ele se considerava livre; na espécie de liberdade a qual somos suscetíveis, quanto mais o exercício de nossos direitos políticos nos deixar tempo para nossos interesses privados, mais a liberdade nos será preciosa. Daí vem, Senhores, a necessidade do sistema representativo. O sistema representativo não é mais que uma organização com a ajuda da qual a nação confia a alguns indivíduos o que ela não pode ou não quer fazer. Os pobres fazem, eles mesmos seus negócios, os homens ricos contratam administradores. É a história das nações antigas e das nações modernas. O sistema representativo é uma procuração dada a um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses defendidos e não tem, no entanto, tempo para defendê-los sozinho. Mas, salvo se forem insensatos, os homens ricos que têm administradores examinam, com atenção e severidade, se esses administradores cumprem seu dever, se não são negligentes, corruptos ou incapazes; e, para julgar a gestão de seus mandatários, os constituintes que são prudentes mantêm-se a par dos negócios cuja administração lhes confiam. Assim também os povos que, para desfrutar da liberdade que lhes é útil, decorrem ao sistema representativo, devem exercer uma vigilância ativa e constante sobre os seus representantes e reservar-se o direito de, em momentos que não sejam demasiado distanciados, afastá-los, caso tenham traído suas promessas, assim como o de revogar os poderes dos quais eles tenham eventualmente abusado. (CONSTANT, De la liberte chez lês modernes. p. 511-512.)
Montesquieu, em O espírito das leis, tenta demonstrar que regimes políticos como a democracia grega e a res publica romana, vão contra a natureza individualista humana e, portanto, somente através de um processo de educação cívica intensiva e contínua é que poderiam se tornar viáveis. Em contrapartida, ele sustenta que o homem moderno não estaria disposto a pagar esse preço para conquistar a liberdade política e por isso a monarquia constitucional seria a solução mais plausível, uma vez que não exige a virtude e tampouco a participação dos súditos na construção da esfera pública, mas limita os poderes do rei.
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