"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

O cinema e uma nova percepção (Parte 06/09)


O Sentido da Imagem

Pode-se aplicar essa estrutura interpretativa da sensibilidade na explicação das cores, por exemplo. Não é a inteligência que atribui cores aos objetos. Elas são percebidas na própria visão, no próprio ato de olhar. E mais: a cor não é somente captada pelo olhar. Enquanto que, na psicologia clássica, os cinco sentidos eram tidos como unidades separadas que eram coordenadas pelo intelecto; na psicologia moderna os sentidos formam uma unidade. Exemplo disso é o fato de que as cores não possuem elementos apenas captados pela visão, mas também por outros sentidos: tato, olfato, audição. Por isso pode-se perceber as cores não apenas com os olhos, mas com outros sentidos do corpo: a cor preta pode ser sentida como “quente”, por exemplo.

Isso nos revela que não há um mundo fora da mente que se organiza internamente. Mas tudo se dá na relação entre sujeito e objeto. As cores são percebidas não apenas pela visão. Elas não estão nem no objeto propriamente, nem no sujeito internamente, mas na relação entre sujeito e objeto. Essa relação é permeada pelo sentido que se constrói no mundo, não apenas racionalmente. O homem é dentro do mundo, não está separado dele. É na relação que tem com as coisas e os outros que o sentido e o significado se dão, eles se configuram na própria percepção mesma. Perceber não é algo apenas do olhar, mas do corpo como um todo, e não apenas do corpo físico, mas da constituição existencial do sujeito, como afirma Merleau-Ponty: “Minha percepção, então, não é uma soma de dados visuais, táteis ou auditivos: percebo de modo indiviso, mediante meu ser total, capto uma estrutura única da coisa, uma maneira única de existir, que fala, simultaneamente a todos os meus sentidos”. (Idem, p. 19-20)

Da mesma forma como a percepção do mundo é algo que não ocorre de um modo separado do seu sentido e significado, as emoções não estão apenas em nossa mente, interiormente guardadas em gavetas separadas, às quais tiramos à medida que as sentimos. As emoções também são manifestações do ser de cada um, dentro do mundo, e elas se alteram de acordo com as relações que se estabelecem. A emoção não é externalização física de um conteúdo interno, como se pensava na psicologia clássica, mas “... uma variação de nossas relações com outrem e com o mundo, legível em nossa atitude corporal...” (Idem, p. 24). O corpo também se emociona, é emocionado, expressa emoção. O outro, o sujeito humano, não é um robô que calcula e escolhe a partir de seus registros internos qual é a emoção ou expressão que irá responder aos apelos da realidade. As palavras, os gestos, a inteligência, os sentimentos, ocorrem no corpo, constituem uma totalidade, inserida no mundo, nas relações com os outros. Essa nova psicologia ensina a ver no homem “(...) não mais uma inteligência que constrói o mundo, mas um ser que, nele, está lançado e, a ele, também ligado por um elo natural.” (Idem, p. 25) Esse mundo, por conseqüência, não pode ser visto mais como algo exterior ao sujeito, mas “(...) com o qual estamos em contato, através de toda a superfície de nosso ser...” (Ibidem)

Aqui está o ponto de interligação com o cinema. Quando vemos um filme não lhe atribuímos sentido somente por meio de uma construção intelectiva e abstrata. Sentimos o filme, as cenas, há uma produção de ilusão que é própria do filme. Essa ilusão não se dá apenas na história contada pelo filme, mas pela seqüência das cenas, pela superposição de imagens, sons, silêncio, música, na projeção, como uma linguagem. Também o sentido de um filme e adesão à viagem

imaginativa que ele propõe se dá pela identificação da obra com a realidade vivida pelo espectador. Por isso pode-se compreender porque determinados filmes agradam a uns, e não a outros.

O cinema é, portanto, uma forma de produção de sentido com a força da imagem. Nele se tem a possibilidade privilegiada de discussão sobre a relação entre pensamento e técnica, uma vez que fazer cinema não implica somente num saber técnico – e quando se resume a isso o cinema se empobrece – mas na compreensão da relação entre linguagem e pensamento, entre o individual e universal.

O cinema e a filosofia, segundo Merleau-Ponty, dividem a tarefa de expor e discutir visões de mundo. Na medida em que o cinema, não somente enquanto arte para as massas, ou veículo ideológico, com fins políticos e econômicos (embora não se possam excluir completamente essas dimensões da produção cinematográfica ou de qualquer forma de arte), mas como linguagem, como forma visual de um mundo de significados, que o homem percebe, intui e representa, se torna uma das formas de arte características da modernidade. Nessa ênfase ao visual o cinema não apenas expressa, comunica, ou diverte. Ele faz pensar, solicita as emoções, reproduz e produz sentidos e reinventa significados.

Vênus de Milo com gavetas
Salvador Dali - 1964
Estátua de bronze com 814 quilos.

Observe nessa estátua, uma representação de como a racionalidade moderna acabou por dividir o homem em partes separadas. Cada pedaço do corpo (que já está posto separado da alma, do espírito, da mente ou do intelecto, desde os medievais e bem mais nitidamente com os modernos), serve para determinadas funções, possui uma utilidade finita, como um grande armário (ou máquina) que funciona a partir de uma engrenagem própria.

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