"Nada se espalha com maior rapidez do que um boato" (Virgílio)

A Democracia em Questão (Parte 05/14)

John Stuart Mill (1806-1873) - Filósofo e parlamentar inglês, que tem entre suas obras mais importantes publicadas em português: A liberdade; Utilitarismo; Capítulos sobre o socialismo.

John Stuart Mill: um liberal que dialogava com o socialismo

Entre os liberais do século XIX, John Stuart Mill talvez tenha sido o único disposto a reconhecer e superar os limites do individualismo e do utilitarismo. Mill apresenta características libertárias em sua concepção de sociedade, particularmente em sua crítica da tirania e das desigualdades, e não apenas no que se refere às desigualdades sociais, mas também quanto às desigualdades políticas, na defesa do sufrágio universal contra o voto censitário, no apoio ao cooperativismo, além de ter sido um dos pioneiros na defesa da emancipação da mulher.

Sabe-se que Mill leu autores socialistas ingleses, como Owen e franceses como Fourier, Blanc e Saint-Simon e esteve aberto ao diálogo com as correntes que se opunham ao liberalismo e reivindicavam direitos sociais. No entanto, manteve-se fiel à defesa das liberdades individuais e ao princípio liberal da liberdade negativa, expresso na introdução de Sobre a liberdade.

O Utilitarismo de Mill

O liberalismo de John Stuart Mill tem no seu fundamento a moral utilitarista, para a qual a busca da felicidade está ligada à realização de formas elevadas de prazer – necessidades, desejos e interesses, e que não se reduz, portanto, às formas de prazer imanentes à vida animal. Para o utilitarismo, uma ação moral é considerada correta e útil se proporciona felicidade e incorreta e inútil se, pela ausência de prazer, ocasiona a infelicidade.

Interessa-nos aqui, a forma como Mill equaciona seu utilitarismo individualista com a questão da sociabilidade necessária, que é para ele a referência mais importante para os níveis de felicidade individual.

Considerando que a felicidade individual está relacionada à sociabilidade, à justiça, enquanto criação e proteção de direitos, ela configura-se, para Mill, na mais importante das virtudes e, para que ela se realize, é fundamental que haja igualdade, desde que essa se demonstre útil para a vida em sociedade. A esse respeito, Mill considera que:

Todas as pessoas têm direito à igualdade de tratamento, a menos que alguma conveniência social reconhecida exija o contrário. Daí se segue que todas as desigualdades sociais, que tenham deixado de se considerar convenientes, assumam daqui por diante o caráter, não de mera inconveniência, mas de injustiça, e se mostrem tão tirânicas que as pessoas cheguem a se perguntar como foi possível algum dia suportá-las. (MILL, J.S. A liberdade. p. 275)

Na seqüência desta nossa investigação acerca dos possíveis sentidos da vida política e das possibilidades da democracia moderna e contemporânea vamos experimentar como a Literatura pode tratar de um tema como a política.

O filósofo francês Claude Lefort escreve que no decorrer das suas leituras, foi se dando conta da existência de uma proximidade entre a literatura e filosofia política. Ele diz que a experiência da vida política pode ser captada pelo movimento do pensamento como também pelo movimento da escrita.

Indo diretamente ao ponto: o romancista recusa o caminho da argumentação; o autor de uma obra política recusa o caminho da ficção. Todavia, é suscitar em nós uma perturbação.

(...)

Tão logo lemos uma obra singular, somos arrastados para uma aventura que nos faz esquecer os quadros fixados pela ciência política e pela história da filosofia política – aventura sempre rica em novas surpresas. Aliás, por pouco que nos reportemos a um texto, após acreditar tê-lo enfim compreendido, descobrimos com freqüência, na segunda ou terceira leitura, que estivemos cegos ao que no entanto estava sob nossos olhos. Ora, a experiência da leitura ensina que as idéias não se separam da linguagem e que é sempre por um processo de incorporação da escrita do outro que ganhamos o poder de pensar o que ele mesmo busca pensar. (LEFORT, 1999. p. 09, 10)

O argumento de Lefort é instigante, impele-nos à reflexão e à tentativa da demonstração da sua verdade. Escolhemos assim, o Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José Saramago, para provocar as nossas concepções políticas pela via da ficção, e talvez pela proximidade e complementaridade entre literatura e filosofia política, aprimorarmos nosso pensamento.

Saramago descreve a situação de uma cidade que se defronta, inesperadamente, com um surto epidêmico de cegueira que em pouco tempo tomaria conta de toda a população. Tal contingência obrigaria essa sociedade a aprender a viver e a conviver sob regras muito diferentes daquelas às quais estavam habituados.

O sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que não tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila está meio parado, deve haver ali um problema mecânico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou, ou uma avaria no sistema hidráulico, blocagem dos travões, falha no circuito elétrico, se é que não lhe acabou simplesmente a gasolina, não seria a primeira vez que se dava o caso. O novo ajuntamento de peões que está a formar-se nos passeios vê o condutor do automóvel imobilizado a esbracejar por trás do pára-brisas, enquanto os carros atrás dele buzinam frenéticos. Alguns condutores já saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automóvel empanado para onde não fique a estorvar o trânsito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca percebe-se que repete uma palavra, uma não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego. (SARAMAGO, 1998. p.11-12)

O romance segue descrevendo outras situações de cegueira até que se percebe e reconhece tratar-se, como já dissemos, de uma epidemia.

O governo, visando proteger a parte “sã”, determina o regime de quarentena.

Nesse instante ouviu-se uma voz forte e seca, de alguém, pelo tom, habituado a dar ordens. Vinha de um altifalante fixado por cima da porta por onde tinham entrado. A palavra Atenção foi pronunciada três vezes, depois a voz começou. O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificar-se algo de semelhante a um surto epidêmico de cegueira, provisoriamente designado por mal-branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a propagação do contágio, supondo que de um contágio se trata, supondo que não estaremos apenas perante uma série de coincidências por enquanto inexplicáveis. (Ibid., p. 49-50)

Uma população de cegos, confinada, ou abandonada em total isolamento num manicômio desativado, com a incumbência de organizar-se para sobreviver.

O que seria de uma sociedade que ao perceber-se cega, tomasse consciência de que está presa ao vício da ocularidade (expressão do filósofo francês Gaston Bachelard), porque já se entregara cegamente ao imediatismo e ao automatismo das imagens, que se permitira levar para longe das mediações promovidas pelo pensar crítico? O que poderia fazer essa sociedade imagética sem a visão?

Uma multidão de cegos, que pouco tem em comum, exceto o fato de estarem cegos e viverem juntos, como se organizaria? Em que princípios se fundamentaria? Quais seriam os seus objetivos comuns? O que poderia fazer uma sociedade que sempre apostou no individualismo como forma de organização da sociedade?

(...) Um governo, disse a mulher, Uma organização, o corpo também é um sistema organizado, está vivo enquanto se mantém organizado, e a morte não é mais do que o efeito de uma desorganização. E como poderá uma sociedade de cegos organizar-se para que viva, organizando-se, organizar-se já é, de uma certa maneira, começar a ter olhos. (Ibid., p. 281-282)

A cidade cega da ficção de Saramago, vive o drama de uma cegueira ética e política, um drama que não é, de forma alguma, estranho às nossas realidades.

Por que foi que cégamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cégamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem. (Ibid. p. 310)

É sobre essa cegueira que nos atinge enquanto indivíduos, que atinge e contamina nossas relações intersubjetivas, éticas e políticas, que pretendemos continuar tratando. Só que agora, retomando a perspectiva da filosofia política.


José Saramago (1922-2010) – nascido em Portugal, o romancista, dramaturgo e poeta escreveu, dentre outros: Levantando do chão; O ano da morte de Ricardo Reis; O evangelho segundo Jesus Cristo; Ensaio sobre a cegueira; A caverna; A bagagem do viajante; Cadernos de Lanzarotte; Todos os nomes; Ensaio sobre a lucidez; As intermitências da morte.

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